O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Crônicas de Além-Túmulo — Humberto de Campos


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Judas Iscariotes

Tema principal

1 Silêncio augusto cai sobre a Cidade Santa.  †  A antiga capital da Judéia parece dormir o seu sono de muitos séculos. Além, descansa Getsêmani,  †  onde o Divino Mestre chorou numa longa noite de agonia, acolá está o Gólgota  †  sagrado e em cada coisa silenciosa há um traço da Paixão que as épocas guardarão para sempre. E, em meio de todo o cenário, como um veio cristalino de lágrimas, passa o Jordão silencioso,  †  como se as suas águas mudas, buscando o Mar Morto,  †  quisessem esconder das coisas tumultuosas dos homens os segredos insondáveis do Nazareno.

2 Foi assim, numa destas noites, que vi Jerusalém, vivendo a sua eternidade de maldições.

3 Os Espíritos podem vibrar em contato direto com a história. Buscando uma relação íntima com a cidade dos profetas, procurava observar o passado vivo dos Lugares Santos.
Parece que as mãos iconoclastas de Tito por ali passaram como executoras de um decreto irrevogável. Por toda parte ainda persiste um sopro de destruição e desgraça. Legiões de duendes, embuçados nas suas vestimentas antigas, percorrem as ruínas sagradas e, no meio das fatalidades que pesam sobre o empório morto dos Judeus, não ouvem os homens os gemidos da humanidade invisível.

4 Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou a Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.
— Sabe quem é este? — murmurou alguém aos meus ouvidos — Este é Judas.
— Judas?

5 — Sim. Os Espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos.
Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir à Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho…

6 Aquela figura de homem magnetizava-me.
Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração ligaram-se, para que eu o entrevistasse, procurando ouvi-lo.

7 — O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariotes? — perguntei.
— Sim, sou Judas, respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica. Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios…

8 — É uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade, na tragédia da condenação de Jesus?
— Em parte… Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e às tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação.  9 Pôncio Pilatos, o tetrarca da Galileia, além dos seus interesses individuais na questão, tinha ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer às aspirações religiosas dos anciãos judeus.  10 Sempre a mesma história. O Sanedrim  †  desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas, com a sua pureza imaculada.  11 Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre; porém, o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória com o seu desprendimento das riquezas.

  12 Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder, já que, no seu manto de pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda, como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado.  13 O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica, como a que fez mais tarde Constantino Primeiro,  †  o Grande, depois de vencer Maxêncio  †  às portas de Roma, o que, aliás, apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo.  14 Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

15 — E chegou a salvar-se pelo arrependimento?
— Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica, submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta.  16 Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado.  17 Vítima da felonia e da traição, deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV. n Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência…

18 — E está hoje meditando nos dias que se foram… — pensei com tristeza.
— Sim… estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas, que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos.

  19 Vejo-o ainda na cruz, entregando a Deus o seu Destino… Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que o abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que o ampararam no doloroso transe…  20 Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor… Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra… ( † ) Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência, no tribunal dos suplícios redentores.

21 Quanto ao Divino Mestre, — continuou Judas com os seus prantos, — infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque, se recebi trinta moedas, vendendo-o aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado…
— É verdade — concluí — e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-lo.

22 Judas afastou-se, tomando a direção do Santo Sepulcro, e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.


Humberto de Campos n

(Irmão X)

19 de Abril de 1935.



[1] v. Joana d’Arc.


[2] Sobre esta crônica há, em Reformador (ano LXII, n. 9, pág. 204), uma interessante notícia - Nota da Editora em edições posteriores a esta 1ª edição.


Essa mensagem foi publicada primeiramente em 1935 pela LAKE e é a 5ª da 1ª Parte do livro “Palavras do Infinito.”

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Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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