O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Volta Bocage… — Manuel M. B. du Bocage


Apreciação

Fora ousadia de qualquer um “apresentar” Bocage. O estro maravilhoso do grande poeta português, que nasceu a 15 de setembro de 1765 e desencarnou a 21 de dezembro de 1805, é desses clarões que fulguram rubros acima de todo o horizonte: para que toda a gente os veja e admire.

Inquieto ou submisso, piedoso ou sarcástico, simples ou grandíloquo, inconsequente ou sentencioso — era o mesmo Bocage; era o jovem insatisfeito, que deixava a estrídula flauta de Pã capripede por tanger a langorosa lira de Orfeu ou a maviosa cítara de Apolo; que tanto se arrojava aos pés da “ninja etérea, de puníceo manto”, “mãe dos Amores, das espumas filha, que o amor na concha azul passeia airosa”, como se alcandorava ao regaço “da imaculada Virgem sacrossanta”, “Virgem depois de mãe, mulher bendita”; que, sem de todo desprezar a Calíope de Camões e a Érato de Anacreonte, preferia, no entanto, a Polímnia de Bernardim Ribeiro. E foi com a lira que viveu; que só a quebrou, para refazê-la depois, ao se desatarem os liames que lhe cativavam a ninfa do Espírito ao casulo terreno.

À maneira do cantor d’“Os Lusíadas”, a quem desejou imitar, indo à colônia portuguesa do Extremo Oriente, enaltecia o Olimpo e adorava o Céu. Ouçamo-lo cantar:


Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar c’o sacrílego gigante.


Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.


Ludíbrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.


Modelo meu tu és… Mas, ó tristeza!
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.


As Tágides o embeveciam, quanto estarrecido se quedava ante o portento da Via-láctea. Deleitava-lhe o íntimo a ambrosia de Júpiter, como lhe ardia o vinagre do inominável sacrifício do Calvário, lastimando estar no meio daqueles que por seus erros ofendem ao Pai e pelos quais o Cordeiro se deixava imolar:


O filho do Grão-Rei, que a monarquia
Tem lá nos céus, e que de Si procede,
Hoje mudo e submisso à fúria cede
De um povo, que foi seu, que à morte O guia.


De trevas, de pavor se veste o dia,
Inchado o mar o seu limite excede,
Convulsa, a terra por mil bocas pede
Vingança de tão nova tirania.


Sacrilégio mortal, que espanto ordenas
Que ignoto horror, que lúgubre aparato?!
Tu julgas teu juiz! Teu Deus condenas!


Ah! castigai, Senhor, o mundo ingrato:
Caiam-lhe as maldições, chovam-lhe as penas,
Também eu morra, que também vos mato.


Era Manuel Maria de Barbosa du Bocage um romântico por natureza; e na poesia, que lhe era a vida mesma, um lírico, índole esta que se lhe adivinhava já aos oito anos de idade! Em Setúbal nascera, numa época de transição literária, na qual a literatura de Portugal emergia do marasmo do pseudoclassicismo, ainda dominante no mesmo século XVIII, para o doce período do Romantismo. Desviando-se dos moldes clássicos, demasiado rígidos, Bocage pendeu para a escola que seria a do inolvidável Antônio Feliciano de Castilho: era a luva que se lhe ajustava, por independer de regras convencionais e por visar o efeito da expressão; era a imaginação e a sensibilidade sobrepondo-se à razão; era o individualismo, que não implicava, entretanto, qualquer óbice à expansão do gênio individual; era o desafogo dos sentimentos íntimos, revelados através da poesia lírica; era o instrumento que se oferecia ao poeta, vindo novamente ao planeta em época própria; era a expressão mesma do exuberante Espírito, ávido de desabafo em hinos à Natureza; e, com efeito, embora seu forte fosse o soneto, compôs vários gêneros da poesia, entre os quais odes satíricas e anacreônticas. Recordava talvez, assim, o poeta a Arcádia antiga, ou; ainda, aquele país imaginário de puro bucolismo, de pastores fiéis ao amor; e quem sabe não fora Bocage um deles?

Insatisfeito, como sempre, não lhe agradou o estilo da famosa “Arcádia de Lisboa”, sucessora das pitorescas escolas que reinavam desde o século XII e que viveu de 1757 a 1774. Em divergência com Francisco Manuel do Nascimento, conhecido por “Filinto Elísio”, que compunha odes segundo o modelo do clássico Horácio, fundou o “Elmanismo”, o grupo dos admiradores de “Elmano”, adotado na Nova Arcádia. Era seu pseudônimo “Elmano Sadino”, sendo “Elmano” o anagrama de Manuel e “Sadino” por ter o vate nascido às margens do rio Sado.

Temperamento irrequieto, defrontou-se, no mundo, com os distúrbios que ele mesmo propiciava. Sedento de paisagens, por mais íntimo contato com a Natureza, viajou, por profissão espontaneamente eleita, até longes terras, e mais além pretendia se não fora motivo de força maior.

O espírito de liberdade o não deixava repousar, e assim vibra:


Liberdade, onde estás? Quem te demora?
Quem faz que o teu influxo em nós não caia?
Por que (triste de mim!), por que não raia
Já na esfera de Lísia a tua aurora?


Da santa redenção é vinda a hora
A esta parte do mundo, que desmaia:
Oh! Venha… Oh! Venha, e trêmulo descaia
Despotismo feroz, que nos devora!


Eia! Acode ao mortal, que frio e mudo
Oculta o pátrio amor, torce a verdade,
E em fingir, por temor, empenha estudo.


Movam nossos grilhões tua piedade;
Nosso numen tu és, e glória, e tudo,
Mãe do gênio e prazer, ó Liberdade!


A deplorável mentalidade da época mereceu, diversas vezes, a candente reprovação por parte do genial satírico, e Bocage “chibava” de rijo, sem peias nem rebuços, “na súcia dos tafuis”. Aumentava destarte sua própria angústia, que lhe nasceu desde que ficara órfão de mãe aos dez anos de idade. Essa índole buliçosa lhe custou amargos dias, sobretudo naquele período de vero despotismo, assim governamental, como religioso; perseguido, em consequência de linguagem desenvolta, entregaram-no as autoridades civis ao “Santo Ofício”, a pretexto de ofensas à Fé. Preferível lhe foi, por sem dúvida, o enclausuramento nos cárceres daquele tribunal, donde foi removido para um mosteiro e depois para o Hospício de N. Sª das Necessidades; as autoridades eclesiásticas o trataram, porém, com brandura e com a consideração que lhes merecia o talento do ilustre prisioneiro.

Não quero crer que os maus versos de Bocage, isto é, aqueles em que estrugia a “vil matéria lânguida” em rasgos de sangue moço, fossem a revelação de caráter inferior. Todas as paixões, com as quais se lhe procure denegrir a memória, são frutos da mesma árvore, são contingências desse misto de luz e de treva, desse milagre — divino privilégio! — de sol e caligem coexistentes em tão minúsculo âmbito do cárcere carnal e que se chama criatura humana. Tudo, ao contrário, revelava, no poeta, ascensão; tudo lhe estuava de vida intensa. Poderíamos dizer, por paradoxo, que o matara, não a míngua de energia, mas o excesso de vida; que cerrara os olhos à pletora de luz; que, à força de atropelar o trabalho de Cloto e de Láquesis, decidira Átropos escindir-lhe, duma vez, o fio mal tecido.

Cite-se, ainda, sua adesão, uns dois anos antes de partir para o “refulgente empíreo”, ao chamado “Grupo dos Filósofos”, que com o “Grupo dos Fidalgos” e o “Grupo dos Brejeiros” formava espécie de academia no convento de São Vicente. Por que sua preferência pelo “Grupo dos Filósofos”? Por lhe parecer mais sincero nos propósitos: ao segundo mencionado pertenciam nobres enfatuados e vazios, com os quais a elevação de espírito do poeta absolutamente não se poderia coadunar; ao terceiro muito menos pudera dar apoio, pois nesse imperavam deidades muito diversas das musas.

Eis o Bocage, a quem o “das Gorgonas, das Fúrias negro bando” pretende lançar a pecha de “ser odioso, além de desgraçado”. Mas diz o forte bardo:


Não me consterna o ver-me trespassado
Com mil golpes cruéis da desventura,
Porque bem sei que a frágil criatura
Raramente é feliz no mundo errado.


Essa “desventura” não se resume só na sua existência farta de tribulações; deve entender-se também como o infame golpe de “buídos punhais”, que brandem não os “três vis algozes” de Inês de Castro, senão “a sussurrante, a vil Maledicência”, a “inveja pestilente” que “sobre o néctar, que a ventura por mãos de neve” oferecera ao poeta, cuspiu, e ainda cospe “lívidas gotas de infernal peçonha”.


Que sejam de Elmano verdadeiros os estouvamentos de que lhe havemos [dado] notícia: não seriam esses desvios um derivativo patente, como que espezinhamento da matéria, contra a qual o ardente Espírito se rebelava? Esgota a amarga taça da mocidade e, com esta, a si mesmo. Reconhece, porém, a inutilidade dessa luta feroz entre Espírito e matéria, pelas armas desta. Verifica, e não só em extrema hora, que os meios de vitória do homem não são os materiais, senão os espirituais. Vemo-lo lançar aos ombros do homem a responsabilidade integral dos seus atos e o traçado do seu destino:


Vós, crédulos mortais, alucinados
De sonhos, de quimeras, de aparências,
Colheis por uso erradas consequências
Dos acontecimentos desastrados.


Se à perdição correis precipitados
Por cegas, por fogosas impaciências,
Indo a cair, gritais que são violências
De inexoráveis céus, de negros fados.


Se um celeste poder tirano, e duro,
Às vezes extorquisse as liberdades,
Que prestava, ó Razão, teu lume puro?


Não forçam corações as divindades;
Fado amigo não há, nem fado escuro:
Fados são as paixões, são as vontades.


E ainda afirma:


“……………………………………….
Um Deus adoro, a Eternidade temo,
Conheço que há vontade, e não destino.


Tais palavras desmentem o errôneo juízo que as autoridades formavam do “ímpio, cruel, sacrílego, blasfemo”, pois bem queriam vê-lo consumido em “língua voraz de labareda ardente”, naquele


Bárbaro tempo! Abominosa idade,
Às outras eras pelos Fados presa
Para labéu e horror da Humanidade!
Flagelos da virtude e da grandeza,
Réus do infame e sacrílego atentado
De que treme a Razão, e a Natureza!


Diga-se, em consciência, se era “ímpio” quem assim raciocina:


Qual novo Orestes entre as Fúrias brada
Infeliz, que não crês no Onipotente;
Com sistema sacrílego desmente
A razão luminosa, a fé sagrada.


Tua bárbara voz iguala ao nada
O que em todas as coisas tens presente;
Basta que o sábio, o justo, o pio, o crente
Louve a mão, contra os maus do raio armada.


Mas vê, blasfemo ateu, vê, monstro horrendo,
Que a bruta opinião, que cego expressas,
A si mesma se está contradizendo:


Pois quando de negar um Deus não cessas,
De tudo o inerte Acaso autor fazendo,
No Acaso, a teu pesar, um Deus confessas!


E seja-nos permitido acrescentar, do mesmo bardo:


Salve, princípio d’alma, etéreo lume!
Se um Deus não fora, que seria Elmano!
Existe o vate, porque existe o nume.


Proclame-se “blasfemo” o cantor, que por todos os mortais — e entre esses os seus detratores, exora:


Eterno Deus! Não longe de teus lares
Tépida nuvem de maldito incenso,
Dado ao negro Satã, perturba os ares.
Que tolerância tens, monarca imenso!
Por mais crimes, senhor, que o mundo faça,
Tudo releva teu amor intenso.
Desce, ah! desce dos céus, potente graça,
Difunde a santa luz, a santa crença
Pelos cegos mortais, que o erro enlaça!


Tais versos, tão miríficos quão surpreendentes, — pois da autoria de alguém a quem se atribuem vilezas, — bem poderiam figurar na presente dúzia, ora brindada através do lápis do excelente Francisco Cândido Xavier; entretanto, forjou-os o Espírito ainda enclausurado.

Contra os “sacrílegos”, que o perseguiam por sectarismo, cabe o anátema, por desfigurarem a Imagem Sagrada:


Um Ente, dos mais entes soberano,
Que abrange a terra, os céus, a eternidade;
Que difunde anual fertilidade,
E aplana as altas serras do oceano:


Um nume só terrível ao tirano,
Não à triste mortal fragilidade;
Eis o Deus, que consola a Humanidade,
Eis o Deus da razão, o Deus d’Elmano:


Um déspota de enorme fortaleza,
Pronto sempre o rigor para a ternura,
Raio sempre na mão para a fraqueza:


Um criador funesto à criatura;
Eis o Deus, que horroriza a Natureza,
O Deus do fanatismo, ou da impostura.


Aludindo à profecia de Isaías: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emmanuel” (Isaías, cap. VII, v. 14), ( † ) estendida no cap. XI, ( † ) que, por ser longo, aqui não podemos transcrever, tem o poeta o seguinte surto:


«Queimando o véu dos séculos futuros
«O vate, aceso em divinais luzeiros,
«Assim cantou (e aos ecos pregoeiros
«Exultaram, Sion, teus sacros muros):


«O justo descerá dos astros puros
«Em deleitosos, cândidos chuveiros,
«As feras dormirão com os cordeiros,
«Suarão doce mel carvalhos duros;


«A Virgem será mãe; vós dareis flores,
«Brenhas intonsas, em remotos dias;
«Porás fim, torva guerra, a teus horrores.»


«Não, não sonhou o altíssono Isaías;
«Ó reis, ajoelhai; correi, pastores!
«Eis a prole do Eterno, eis o Messias!»


Em comentário aos dois mundos — o daqui e o d’além — encontramos estes versos magistrais dum mesmo soneto, em que o vate lamenta a partida duma das irmãs para a pátria espiritual:


……………………………………….
O que é do céu ao céu restituíste,
Restituíste ao nada o que é do nada.


……………………………………….
É cativeiro para o justo a vida,
A morte para o justo é recompensa.


Ideias estas pura e lidimamente cristãs — na ampla acepção do termo — poderiam também haver sido agora ditadas pelo poeta já liberto no Espaço; versos que se enquadram na genuína escola da poesia lírica, que tanto apreciava a repetição de palavras, como a que notamos nos transcritos.

Bocage, um “ateu”, que consagrou a Deus quatro ou cinco sonetos e ao Cristo três; que à Virgem dedicou um, além de quatro cantos, dois dos quais compostos para solenizar a festividade de 8 de dezembro!

E agora pasme, leitor, com esta revelação da lei do “Carma”:


Nas páginas fatais é tudo eterno!
O que se escreve ali jamais se risca.


Eram, outrossim, do estilo o contraste e o confronto: a este respeito, os sonetos pela primeira vez hoje divulgados são também exemplo vivo. Recordemos o seguinte, que todo o escolar sabe de cor:


Nos campos o vilão sem sustos passa,
Inquieto na corte o nobre mora;
O que é ser infeliz aquele ignora,
Este encontra nas pompas a desgraça.


Aquele canta e ri; não se embaraça
Com essas coisas vãs que o mundo adora;
Este (ó cega ambição!) mil vezes chora,
Porque não acha bem que o satisfaça.


Aquele dorme em paz no chão deitado,
Este no ebúrneo leito precioso
Nutre, exaspera velador cuidado.


Triste, sai do palácio majestoso;
Se hás de ser cortesão, mas desgraçado,
Antes ser camponês e venturoso!




Não sei se fora justo, do ponto de vista em que nos colocamos, um paralelo entre Bocage e o protagonista Jorge, de “A Viuvinha”, de José de Alencar. Bem creio que, como o estróina rapaz, cuja alma se conservara alheia à agitação da matéria e isenta do lodo onde se afundaram os bens herdados, o Espírito do poeta, vagando por altíssimas regiões, nestas permanente morada havia, longe do vício que lhe era estranho.

Houve quem julgasse Bocage “um fruto da sua época”: seria uma justificação do estranho proceder do rapaz, mas afirmativa cediça, que se repete sem reflexão. Comentando esse juízo, outro crítico não perdoa ao melodista lusitano as inegáveis fraquezas, alegando que nem todos os coevos de Bocage se permitiram arrastamento pelas correntes daquele tormentoso trecho da vida portuguesa. Outro assevera que Elmano “veio ao mundo fora do seu tempo”: que difícil que é a vida!

Para mim, o problema está malposto. Dizer que alguém seja “fruto da sua época” é, de certo modo, negar-lhe individualidade, o que é patentemente falso; cada um de nós tem uma personalidade, pela qual se distingue dos demais homens e pela qual é responsável no âmbito coletivo: isto, em primeiro lugar. Frutos duma época seriam milhões de criaturas, que, entretanto, se diferençam tanto quanto (para seguir a mesma imagem) se formassem em épocas distintas; e, para demonstrá-lo aos que assim raciocinam, basta alçar os olhos àquela outra afirmativa, tão generalizada: “era um homem fora da sua época”. Em segundo lugar, a própria asserção do segundo crítico, a que aludimos, desmente este conceito; buscando aviltar o grande vate, observa que outros homens procederam, na mesma época, de modo bem diverso e, ao seu ver, bem mais digno.

As criaturas animadas não são “frutos do seu tempo”, quais frutos da mesma árvore. A estes não lhes cabe a culpa de ser amargos, nem a glória de ser doces; a estes não poderiam ser comparadas aquelas, que têm uma consciência; se assim fora, adeus responsabilidade, mérito e demérito! Observadores que tais veem de esconso o complexo problema humano; como fonte das faculdades anímicas enxergam tão somente a matéria, aquela que receberia, de pronto, as influências do meio e que agiria a seguir, de moto próprio.

Não se pode, por evidente, negar a influência do meio sobre o indivíduo, como não se pode deixar de reconhecer a do corpo físico sobre o Espírito; mas daí afirmar que alguém seja “fruto da sua época”, o que vale dizer “do seu meio”, vai infinita distância. A não ser um Cristo, ao que saibamos, todos os Espíritos, que aportem às plagas terrenas, hão de sofrer das injunções do ambiente-espaço e do ambiente-tempo; a matéria, de que ainda se acham revestidos — abstração feita mesmo do material mais grosseiro e palpável — há de ter sombra, de receber sombra, de projetar sombra, até que fuja a essa condição alcançando a radiosidade do Mestre, que em torno de si, por maravilha, só despede luz e em cujo diáfano corpo não encontram guarida as sombras dos mortais.

O problema, dissemos, está malposto. Desejam, os que menos do que os espiritualistas atingimos, afirmar uma verdade maior do que supõem. É fato que, por inferiores que somos, — uns mais abaixo, outros mais acima, — tem a época, em que reiniciamos o ciclo da vida, influência, maior ou menor, sobre o nosso Espírito. Os menos evoluídos serão, necessariamente, os mais tocados pelo meio, o qual tem, por natureza, mais de material do que de espiritual; os golpes lhes ferem a pele de mais rijo e a reação lhes é proporcionalmente mais intensa. Tendo material menos delicado, sentem-se atingidos com extrema violência, por oferecer tanto maior resistência: lembra-nos aqui a fábula do carvalho e do caniço; ( † ) e ainda aqui nos vêm à mente as palavras, sempre judiciosas, do Mestre, sobre a não-resistência aos maus.

Ocupando nosso planeta uma ordem relativamente inferior, é, pois, natural que seus habitantes; em grande maioria, sofram, de modo mais profundo, os embates desagradáveis de tal círculo. Os próprios Espíritos elevados, que se dignam baixar entre nós, sejam os que encarnam, sejam os que fortuitamente nos procuram para dar conselhos ou que a nós se afeiçoam para guiar-nos, padecem da pestilência em que nos debatemos; é-lhes enorme sacrifício o contato conosco, da mesma sorte que verdadeira caridade é a preciosa abnegação de médicos e enfermeiros em colônia de leprosos: nunca seremos demasiado gratos a uns e outros desses missionários.

O que não veem os materialistas, nem mesmo os que não admitem o princípio da reencarnação, é que o Espírito encarna em época própria, para nela encontrar as condições que deve preencher para seu progresso e para o avanço da coletividade, restrita ou planetária, a que é destinado. É inconsequente o espiritualista que, admitindo a alma, pretende seja esta criada no momento em que deva receber um corpo material, responsabilizando-a, a seguir, por atos que a condenarão por todo o sempre ou que lhe trarão louros de vitória a ser usufruída em algum hipotético Nirvana.

Se, pois, descemos em determinada época e em lugar fixado, então e aí devemos cumprir um destino, de acordo com o plano dos nossos Maiores, que opinam ser a nossa tarefa útil, não só a nós mesmos, como a todos com quem passemos a conviver. Não seremos, assim, — é claro, — “frutos da época”, mas deparamos com uma época, em que possamos desenvolver as capacidades adquiridas e receber outras, utilizando umas e outras na medida de nossas posses e consoante nossa vontade.

Essa liberdade de ação é um dos mais fulgurantes traços do plano do Altíssimo, e por ela ninguém é forçado a seguir este ou aquele rumo, principalmente na esfera moral. No campo científico é compreensível que os estudiosos estejam ligados às teorias dominantes; ainda assim, os de maior visão lançam novas concepções, combatidas, muitas vezes, pelos rotineiros. Sobre questões filosóficas semelhantes considerações se podem expender; mas, é força convir, o mesmo não se dará na esfera moral.

A moral nada tem com a ciência, nem com a filosofia: ao homem impoluto não lhe enodoam a roupa branca os salpicos da vasa mundana. A ciência adquire-se, como a filosofia se aceita; a moral, porém, é parte essencial do Espírito, e este só se inclinará para o mal por virtude de sua própria imperfeição; isto é, seus atos são filhos do próprio mal que nele reside: não são “filhos do seu tempo”, senão desse outro Saturno que demora na alma e que se chama o “homem velho”.

Bocage, como todas as criaturas humanas, viveu na sua época própria; deixou-lhe traço indelével duma pena sui generis; formou estilo, imprimiu personalidade a um tempo em que a literatura atravessava fase indecisa; suas ideias trouxe-as ele consigo, para firmá-las no ambiente que devera, naquela hora, receber mais largos horizontes; moldou o que era informe e pôs-lhe rutilante sinete, que jamais se extinguirá, nem mesmo perderá de brilho.

Hoje, na ilustre escola do Espaço, banhado na alvinitente luz de tão sábia companhia, pôde eleger o rumo que lhe convinha e tirar do embate dos sentimentos que o dominavam — bons e maus — aqueles que realmente o impeliam para o Alto nas asas do seu Pégaso. Instruiu-se e hoje nos ensina; e, por não perder a fibra, concede-nos admoestações, inspiradas, agora, pela Divina Musa da Redenção.




Vejamos, porém, leitor, o reverso da medalha, no tocante à apreciação do gênio que estudamos.

Não somente “crespa de serpes, hórrida Maldade” investe contra o grandioso vate que, ostentando “rico diadema de radioso esmalte”, “colheu no Olimpo o antídoto da morte”. Ainda naquela época procelosa, em que se debatia o pensamento nas garras — já bem aparadas — duma congregação de abutres, é-nos grato ler o relatório do censor João Guilherme Cristiano Muller, membro do Desembargo do Paço e deputado da Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros:

“No manuscrito que Vossa Majestade me mandou ver pela portaria retro, apresenta o seu prendado autor novas produções do seu raro talento que lhe assegurara um lugar distinto entre os vates insignes lusitanos, aos quais ainda a posteridade fará justiça.

“Poesias ternas que penetram o coração, e onde, de vez em quando, luzem vislumbres de esclarecida filosofia, cativando a participação dos espíritos mais meditativos do que sentimentais, fábulas graciosas, que ensinam a prática das virtudes as mais benéficas e promovem a intuição de verdades nunca assaz ponderadas, misturadas com traduções que patenteiam tanta familiaridade do seu autor com as belezas das línguas dos originais, como também o seu acesso no santuário dos mais recônditos tesouros do idioma vernáculo, e com epístolas, odes e épodos altissonantes, nos quais desenvolve toda a força de um gênio culto e transcendente, unido intimamente com uma fantasia inesgotável poética: numa palavra, tudo quanto pode servir de documento de um gosto eminente para os mais admiráveis produtos de todos os tempos e de todas as regiões do nosso mundo, de mão dada com a singular destridade de o transplantar sobre o pátrio chão, enquanto neste se cultivam com igual diligência e feliz sucesso os seus próprios: de tudo isto é a presente coleção um elegante florilégio. Bem pena é ser inevitável que se mostrasse em muitos lugares a influência da atmosfera túrbida, carregada e penosa, debaixo da qual o autor plantou grande parte deste rico jardim. Felizmente, porém, se percebe mais o efeito lamentável disto sobre a mente aflita do poeta, que sobre as flores e frutos encantadores das vergônteas que regou com os eflúvios de seu pranto, em cujo afago a sua musa sempre conserva menos o caráter de ministra de inumanas e indecorosas paixões, do que ditames da razão, moralidade e mimosa discrição, pronta a sacrificar tudo o que pode tentar a fraqueza humana a pecar contra respeitáveis leis, boa ordem social e tranquilidade civil e doméstica. Eis aqui as observações que resultaram do exame deste manuscrito, e sobre as quais se escora o meu parecer, que haverá poucos tão dignos da faculdade que o suplicante solicita. Vossa Majestade, porém, ordenará o que for servida.


João Guilherme Cristiano Muller.”  n

No “Dicionário de Rimas Luso-Brasileiro”, de Eugênio de Castilho, “correto, aumentado e precedido de um prefácio e de um compêndio de versificação pelo Visconde de Castilho”, encontramos a seguinte afirmativa, que bastaria para encerrar esta breve Apreciação:

O soneto português, podemos dizer sem exageração, nasceu com Bocage, e com Bocage morreu.

Vamos, porém, dar a palavra ao nosso imortal Olavo Bilac, em elogio ao sublime árcade:

“Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bocage e depois dele decaiu. Da sua geração, e das que a precederam, foi ele o máximo cinzelador da métrica. A plástica da língua e do metro; a perícia ao ensamblar das orações e no escandir dos versos; a riqueza e graça, do vocabulário; o jogo sábio e, às vezes, inesperado das vogais e das consoantes dentro da harmonia da frase; a variação maravilhosa da cadência; a sobriedade das figuras; a precisão e o colorido dos epítetos; todos estes difíceis e complicados segredos da arte poética, cuja beleza e variedade às vezes escapam até aos mais cultos amadores da poesia e aos mais argutos críticos literários, e que somente os iniciados podem ver, compreender e avaliar; esta consciência, este gosto, esta medida, este dom de adivinhação e de tato, de que os artistas natos têm o privilégio, — tudo isto coube a Elmano, tudo isto se entreteceu no seu talento. Depois dele, Portugal teve talvez poetas mais fortes, de surto mais alto, de mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu nem o igualou no brilho da expressão.”

Melhor o louve o mesmo príncipe da poesia brasileira, não em linhas corridas, como acima, senão em belíssimo soneto, homenagem digna dum poeta a outro poeta. Ainda mais admiremos Bocage através dessa admiração de quem, por autoridade inconteste, podia avaliar quanto merece talento de tal porte.

E agradeçamos a Deus o mimo que hoje nos oferece o Espírito do bardo lusitano — essas flores de luz, em que se transmudaram as pérolas que colhia do fundo do aguaçal:


“A BOCAGE


Tu, que no pego impuro das orgias
Mergulhavas ansioso e descontente,
E, quando à tona vinhas de repente,
Cheias as mãos de pérolas trazias;


Tu, que do amor e pelo amor vivias,
E que, como de límpida nascente,
Dos lábios e dos olhos a torrente
Dos versos e das lágrimas vertias;


Mestre querido! viverás, enquanto
Houver quem pulse o mágico instrumento
E preze a língua que prezavas tanto;


E enquanto houver num canto do Universo
Quem ame e sofra, e amor e sofrimento
Saiba, chorando, traduzir no verso.


E, para, encerrar esta Apreciação, apliquemos ao genial Elmano seus próprios conceitos a um amigo que se fora da Terra:


Neste dia, em que o véu mortal despiste,
Dias eternos te confere a Sorte.
Se longe do universo errado, e triste,
Triunfa teu espírito fulgente,
Imortal entre nós teu nome existe.



Apud Gomes Monteiro:Bocage, esse desconhecido…


L. C. Porto Carreiro Neto


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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