O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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No Mundo Maior — André Luiz


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No limiar das cavernas

(Sumário)

1. Reunidos agora, Calderaro e eu, à comissão de trabalho socorrista que operaria nas cavernas de sofrimento, fui surpreendido pela expressão da Irmã Cipriana, que chefiava as atividades dessa natureza.

Constituía-se a turma de reduzido número de companheiros: sete ao todo.

2 Avistando-me ao lado do Assistente, perguntou Cipriana com singeleza, feitas as saudações usuais:

— Pretende o irmão André seguir em nossa companhia?

3 O abnegado amigo respondeu que o próprio Instrutor Eusébio lembrara a conveniência de minha visita aos abismos purgatoriais; esclareceu que eu me achava interessado em obter informes da vida nas Esferas inferiores, para os relatar aos companheiros encarnados, auxiliando-os na preparação necessária à ciência de bem viver.

4 A diretora ouviu, bondosa, e objetou:

— Sim, a sugestão de Eusébio é valiosa, em se tratando de observações preliminares no Baixo Umbral. n Como responsável, porém, pelos serviços diretos da expedição, não posso admiti-lo, por enquanto, em todas as particularidades.

5 Fixou em mim o olhar lúcido e meigo, como a lastimar a impossibilidade, e acrescentou:

— Nosso estimado André não tem o curso de assistência aos sofredores nas sombras espessas.

6 Afagou-me de leve, com a destra carinhosa, e acrescentou:

— Se nos é indispensável obter difíceis realizações preparatórias, a fim de colhermos o benefício das Grandes Luzes, é-nos imprescindível a iniciação, para ministrarmos esse mesmo benefício nas “grandes trevas”.

7 Ante o meu indisfarçável desapontamento, a veneranda benfeitora continuou:

— No entanto, convenhamos que o nosso irmão não se encontra, junto de nós, sem problemas substanciais a resolver. Cada situação a que somos conduzidos é portadora de ocultos ensinamentos para nosso bem. Os desígnios superiores jamais nos propõem questões de que não necessitemos, na arena das circunstâncias. Se Eusébio foi levado a sugerir esta oportunidade, é que André Luiz tem nestes sítios urgente serviço a prestar. 8 Considerando, porém, as responsabilidades que me cabem, não posso autorizar que nos siga em todos os passos; contudo, convido o Irmão Calderaro a permanecer, em companhia do prestimoso aprendiz, no limiar das cavernas, sem descerem conosco; mesmo aí, estudioso que é, ele encontrará inesgotável material de observação, sem necessidade de enfrentar situações embaraçosas, para as quais ainda não se aprestou convenientemente…

9 Em face da solução apresentada, alegria geral voltou a confortar-nos. Agradeci, contente. Calderaro também se manifestou reconhecido. E, no júbilo dos trabalhadores que se regozijam com o ensejo de incessantemente aprender para o bem, seguimos na direção de zona medonhamente sombria.


2. Ah! Já divisara tremendos precipícios, onde entidades culposas se interpelavam umas às outras em deploráveis atitudes; vira chover faíscas chamejantes do firmamento sobre os vales da revolta; ( † ) descobrira inúmeras entidades senhoreadas por estranhas alucinações em câmaras retificadoras; mas ali…

2 Estaríamos acaso alcançando a “selva escura”, a que se referira Alighieri, no poema imortal?

3 Laceravam-me o coração as vozes lamentosas dispersas a se evolarem para o céu de fumo! Não, não eram lamentações apenas; à proporção que nos adiantávamos, descendo, modificava-se a gritaria; ouvíamos também gargalhadas, imprecações.

4 Estacamos em enorme planície pantanosa, onde numerosos grupos de entidades humanas desencarnadas se perdiam de vista, em assombrosa desordem, à maneira de milhares de loucos, separados uns dos outros, ou aos magotes, segundo a espécie de desequilíbrio que lhes era peculiar.

5 Não me era possível calcular a extensão da várzea imensa, e ainda que houvesse marcos topográficos, para tal apreciação, o nevoeiro era demasiado denso para que se pudessem computar distâncias.

6 Percorremos alguns quilômetros em plano horizontal, e, quando o terreno se inclinou, de novo, abrindo outras perspectivas abismais, Irmã Cipriana e os colegas prazenteiramente se despediram de nós, deixando-nos, ao Assistente e a mim, com o aviso de que voltariam a buscar-nos dentro de seis horas.

7 Abraçando-me, a diretora disse, gentil:

— Desejo-te, meu amigo, feliz êxito nos estudos. Certo, ao voltarmos, receberemos tuas confortadoras impressões.

Sorri, encantado, a tão generosa demonstração de apreço.

8 Logo após, Calderaro e eu nos achamos a sós na atra vastidão povoada de habitantes estranhos.

As conversações em torno eram inúmeras e complexas. Pareceu-me que aquele “povo desencarnado” não se dava conta da própria situação, pelo que me foi possível ajuizar de início.

9 Enquanto densas turbas de almas torturadas se debatiam em substância viscosa, no solo, onde andávamos, assembleias de Espíritos dementes enxameavam não longe, em intermináveis contendas por interesses mesquinhos.

10 A paisagem era francamente impressionante pelos característicos infernais que nos circundavam. Notando a displicência de muitos daqueles irmãos infelizes, não sopitei as lucubrações que me surgiam.

11 Os grupos de infortunados agiam, ali, desconhecendo os padecimentos uns dos outros? Certos grupos volitavam a pequena altura, como bandos de corvos negrejantes, mais escuros que a própria sombra a envolver-nos, ao passo que vastos cardumes de desventurados jaziam chumbados ao solo, quais aves desditosas, de asas partidas… Como explicar tudo isso?

12 Iniciei meu interrogatório, dirigindo-me ao instrutor:

— Será que estes míseros precitos nos veem?

— Alguns sim, mas não nos ligam maior importância: estão muito preocupados consigo mesmos; abrigaram no coração sentimentos rasteiros, e tardarão em libertá-lo.

13 — Toda esta gente permanece, porém, desamparada, entregue a si mesma?

— Não, — respondeu Calderaro, paciente, — funcionam, por aqui, inúmeros postos de socorro e variadas escolas, em que muita gente pratica a abnegação. Os padecentes e as personalidades torturadas são atendidas, de acordo com as possibilidades de aproveitamento que demonstram.

14 Estampou complacente expressão no rosto e considerou:

— As regiões inferiores jamais estarão sem enfermeiros e sem mestres, porque uma das maiores alegrias dos Céus é a de esvaziar os infernos.


3. Vendo bandos de seres a se locomoverem no ar, quase a nos rentear, recordei que em nossa colônia as faculdades de volição não eram comumente exercidas para não melindrarmos aqueles que as não possuíam desenvolvidas; mas… e ali? Criaturas de baixas condições se moviam nos ares, embora a poucos metros do solo.

2 Calderaro, porém, exclamou:

— Não te surpreendas. A volição depende, fundamentalmente, da força mental armazenada pela inteligência; 3 importa, contudo, considerar que os voos altíssimos da alma só se fazem possíveis quando à intelectualidade elevada se alia o amor sublime. 4 Há Espíritos perversos com vigorosa capacidade volitiva, apesar de circunscritos a baixas incursões. São donos de imenso poder de raciocínio e manejam certas forças da Natureza, mas sem característicos de sublimação no sentimento, o que lhes impede grandes ascensões. 5 No que se refere, entretanto, às entidades admitidas à nossa colônia espiritual, ainda em grande número incapacitadas de usar tal vantagem, o fenômeno é natural. 6 É mais fácil recolher criaturas de maiores cabedais de amor com reduzida inteligência, e convivermos com elas, no processo evolucionário comum, do que abrigarmos pessoas sumamente intelectuais sem amor aos semelhantes; com estas últimas, a vida em comum, no sentido construtivo, é quase impraticável. 7 Neste capítulo da volição, portanto, impende observar os ascendentes mentais, levando em conta, com a própria Natureza, que os corvos voam baixo, procurando detritos, enquanto as andorinhas se libram alto, buscando a primavera.


4. Feito o reparo, perguntei, lembrando-me das injunções terrenas:

— Mas… e as necessidades de subsistência?

2 O instrutor não se fez rogado e informou:

— Nada lhes falta quanto às exigências essenciais de socorro e de manutenção, como ocorre num nosocômio da Esfera carnal.

3 O Assistente fez breve pausa e prosseguiu:

— Referindo-nos ao manicômio, esclareço agora que minha intenção, ao visitar um hospício em tua companhia, foi justamente o de preparar-te para a excursão que ora efetuamos. 4 Temos, aqui, nestas assembleias de incompreensão e dor, infindas fileiras de loucos que voluntariamente se arredaram das realidades da vida. Fixaram a mente nas zonas mais baixas do ser, e, olvidando o sagrado patrimônio da razão, cometeram faltas graves, contraindo pesados débitos.

5 Já viste, em nossa organização espiritual de vida coletiva, irmãos sofredores convenientemente amparados; alguns ainda sofrem estranhas perturbações alucinatórias, outros são guardados à maneira de múmias perispiríticas em letargia profunda, aguardando-se-lhes o despertar; outros povoam vastas enfermarias para se reerguerem espiritualmente pouco a pouco… 6 Aqui, no entanto, se congregam verdadeiras tribos de criminosos e delinquentes, atraídos uns aos outros, consoante a natureza de faltas que os identificam. Muitos são inteligentes e, intelectualmente falando, esclarecidos, mas, sem réstia de amor que lhes exalce o coração, erram de obstáculo a obstáculo, de pesadelo a pesadelo… 7 O choque da desencarnação para eles, ainda impermeáveis ao auxílio santificante, pela dureza que lhes assinala os sentimentos, parece galvanizá-los na posição mental em que se encontravam no momento do trânsito entre as duas Esferas, e, dessa forma, não é fácil de logo arrancá-los do desequilíbrio a que imprevidentes se precipitaram. 8 Retardam-se, às vezes, anos a fio, obstinando-se nos erros a que se habituaram, e, vigorando impulsos inferiores pela incessante permuta de energias uns com os outros, passam, em geral, a viver, não só a perturbação própria, mas também o desequilíbrio dos demais companheiros de infortúnio.


5. Ante o pandemônio que observávamos, o orientador continuou:

— O Erebo da concepção antiga, a crepitar em eternas chamas de vingança divina, é perigosa ilusão; entretanto, os lugares purgatoriais dos desejos e das ações criminosas, aguardando as almas enodoadas pelos desvarios, constituem realidades lógicas, nas zonas espirituais do mundo. 2 Aqui, os avarentos, os homicidas, os cúpidos e os viciados de todos os matizes se agregam em deplorável situação de cegueira íntima. Formam cordões compactos, inclinando-se mais e mais para os despenhadeiros. 3 Cada qual possui romance horrível, de angustiosos lances. Prisioneiros de si mesmos, cerram o entendimento às revelações da vida e restringem os horizontes mentais, movimentando-se em seu próprio interior, em ação exclusiva, nos impulsos primários, a cultivar o pretérito que deveriam expungir. 4 Em melhorando, são assistidos por ativas e abnegadas congregações de socorro que aqui funcionam. Autoridades mais graduadas de nossa Esfera, atendendo a imperativos superiores, improvisam tribunais com funções educativas, cujas sentenças, ressumando amor e sabedoria, culminam sempre em determinações de trabalho regenerador, através da reencarnação na Crosta Terrestre, ou de tarefas laboriosas no seio da Natureza, quando há suficiente compreensão e arrependimento nos interessados que feriram a Lei, ofendendo a si mesmos.

5 Deste vastíssimo arsenal de alienação da mente, ensombrada de culpas, sai o maior coeficiente das reencarnações dolorosas que povoam os Círculos carnais. Daqui, como de outras zonas análogas, seguem para o campo físico, mais denso, milhões de irmãos em provas ríspidas, para que se alijem dos débitos e rearmonizem o íntimo perturbado. Poucos conseguem valer-se da oportunidade terrena, no sentido de restaurar as próprias energias. É sempre fácil fugir ao caminho reto; muito difícil, porém, o retorno…


6. Nesse instante aproximou-se de nós enorme e bulhenta colmeia de sofredores. Tratava-se de tenebroso agrupamento de irmãos positivamente loucos. Falavam a esmo, comentando homicídios; rememoravam com palavras cruéis cenas indescritíveis de dor e de perversidade.

Nenhum deles atinou com a nossa presença.

2 Calderaro, muito sereno, conhecendo-me a curiosidade inveterada, informou:

— Estes infelizes permanecem jungidos uns aos outros em obediência a afinidades quase perfeitas, e são contidos apenas pelas leis vibratórias que os regem. Se quiseres, porém, entrar em relação com a história de alguns deles, sonda a mente individual do tipo que te requeira maior atenção.

3 Aproveitando um momento em que lhes amainara a rixa, aproximei-me de infortunado irmão, que impressionava pela facies macilenta.

Sintonizei-me na onda mental que ele oferecia, mas o quadro que vi não me permitiu longa perquirição.

4 Notei-lhe o motivo que culminara no desvario: assassinara a esposa em pavorosas circunstâncias. Contudo, o mísero não transpirava arrependimento; acariciava o desejo de rever a vítima para supliciá-la, quantas vezes lhe fosse possível.

5 Que tragédia se ocultava, ali, naquelas tormentosas reminiscências?

Atônito, ergui os olhos para o Assistente, em muda interrogação, mas, renteando-nos a fronte, levitava-se pesado grupo de seres monstruosos, fazendo ensurdecedor ruído, e logo esqueci o uxoricida que me prendera a atenção. Calderaro, percebendo-me a perplexidade, explicou:


7. — Este bando de Espíritos miseráveis, que se movimentam como lhes é possível, é constituído de antigos negociantes terrenos, cujo exclusivo anseio foi amontoar dinheiro para satisfazer a própria cupidez, sem beneficiar a ninguém. 2 O ouro, que transitoriamente lhes pertencia, jamais serviu para semear a gratidão num só companheiro de jornada humana. Famintos de fortuna fácil, inventaram mil recursos de monopolizar os lucros grandes e pequenos, em nada lhes interessando a paz do próximo. 3 Foram homens de pensamento ágil, sabiam voar mentalmente a longas distâncias, garantindo êxito absoluto às empresas materiais que levavam a termo com finalidade exclusivamente egoística. 4 Não lhes incomodava o sofrimento dos vizinhos, ignoravam as dificuldades alheias, despreocupavam-se do valor do tempo em relação ao aprimoramento da alma. Queriam unicamente acumular vantagens financeiras, e nada mais. 5 Divorciados da caridade, da compreensão e da luz divina, criaram para si mesmos o mito frio e rígido do ouro, fundindo com ele a mente vigorosa e o tacanho coração… 6 Escravizados, agora, à ideia fixa de ganhar sempre, voam pesadamente aqui e acolá, dementados e confundidos, procurando monopólios e lucros que não mais encontrarão.

7 Condoí-me. Quis deter alguns, confabular com eles fraternalmente, de modo a esclarecê-los; no entanto, o instrutor paralisou-me os braços, murmurando:

— Que fazes? Seria inútil. Impossível é reajustar, num momento, apenas com palavras, tantas mentes em desequilíbrio cruel.

8 E, impulsionando-me para a frente, concluiu:

— Vamos: consumirias muitas semanas para conhecer a paisagem de dor que se nos estende à frente, e dispomos apenas de algumas horas.


André Luiz



[1] [Baixo Umbral ou Umbral inferior: Esferas subcrostais. Nos livros Obreiros da Vida Eterna e Libertação há referências a este Plano.]


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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