O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice | Página inicial | Continuar

Na hora do testemunho — Autores diversos — F. C. Xavier / J. Herculano Pires


Anexo II


Psicologia da liderança espírita

J. Herculano Pires


A liderança espírita é ainda um campo de ensaio. A maioria dos chamados líderes espíritas não têm conhecimento suficiente da Doutrina. São, em geral, médiuns que se impuseram por suas faculdades ao respeito e à admiração de um grupo de adeptos. Às condições necessárias à liderança nas atividades comuns, acrescentam aos fatores mediúnicos: vidência, intuição, capacidade de doutrinação-espírita e abnegação ao próximo, seguindo o lema doutrinário de fora da caridade não há salvação. A esses acréscimos positivos juntam elementos negativos de suas condições individuais: autossuficiência, vaidade, autoritarismo, misticismo de tipa igrejeiro, pretensões culturais sem conteúdo, humildade aparente, hipocrisia farisaica que se excede em demonstrações de pureza e amabilidade festiva. Contrabalançadas pelas qualidades positivas já referidas, essas antiqualidades puramente sociais completam o equipamento do paternalismo que comove os adeptos desprevenidos.


A liderança espírita é um papel que o líder desempenha no meio doutrinário, apoiado no status social comum. Este problema do status é curioso, mas compreensível. Não sendo o Espiritismo uma religião organizada em forma igrejeira — mas uma doutrina livre que abrange todos os ramos do Conhecimento e tem a sua parte religiosa como consequência da científica e da filosófica — não há no Espiritismo cargos nem funções que possam definir um status específico, como o de sacerdote. O líder espírita é lavrador, operário, banqueiro, médico, empresário e assim por diante. Há uma relação natural entre o status social do líder e seu papel doutrinário, mesmo porque o movimento espírita é difuso, não forma uma ilha social, difunde-se por todo o organismo da sociedade. A importância do status social influi naturalmente na importância do papel doutrinário.


Esta breve caracterização da liderança-espírita já nos fornece indicações suficientes para um esboço da Psicologia da Liderança Espírita, que se mostra bastante complexa, Não pretendemos aprofundar o problema, mas apenas colocá-lo em função do assunto deste livro. O Espiritismo, como fato social e cultural, é um fenômeno ainda recente no panorama sociológico e exige tempo a fim de se definir em suas coordenadas evolutivas, em sua estática e sua dinâmica social e particularmente em seus vetores, ou seja, em seus elementos condutores de energias e determinadores de situações específicas. A própria especificidade das situações não é fácil de se definir e caracterizar, pois a condição de espírita não implica distinções raciais ou sociais e nem mesmo uma posição sectária explícita. A universalidade potencial do Cristianismo encontra-se em fase de atualização no Espiritismo, mas essa passagem da potência a ato depende de um lento e profundo processo de aculturação que, na verdade, consiste na elaboração de uma nova cultura. Tudo parece feito, e, no entanto, tudo está por fazer. Um mundo novo não surge do nada, como na alegoria do fiat, mas das raízes e da seiva de um mundo que o antecedeu. O velho e o novo se misturam gerando uma situação ambígua em que os indivíduos e os grupos espíritas mostram-se profundamente diferenciados entre si. Não existe a homogeneidade necessária às classificações habituais. A massa espírita não se destaca do quadro geral da população e esta a encara numa perspectiva plurivalente: os espíritas lhe parecem ao mesmo tempo benéficos e maléficos, ingênuos e espertos. cultos e ignorantes, bondosos e perigosos, a serviço de Deus ou do Diabo, criaturas de fé e de má-fé, racionais e fanáticos, e assim por diante. É a mesma situação dos cristãos primitivos no mundo antigo, embora pareça, atualmente, uma situação inteiramente nova. Nessa heterogeneidade sociocultural a liderança espírita exige extrema versatilidade, o que por sua vez, aumenta as suas dificuldades por gerar desconfianças. Combatidos, caluniados, perseguidos e ridicularizados pelo clero das religiões tradicionais, pelas diversas ordens espiritualistas, pelas instituições científicas (particularmente pelas instituições médicas) pela imprensa, o rádio e a tv, explorados em sua generosidade por espertalhões de todos os tipos, os espíritas desenvolveram naturalmente o seu instinto de defesa e preservam-se na desconfiança. Não obstante, a sua obstinação na boa-fé — decorrente dos princípios doutrinários de fraternidade, tolerância e amor ao próximo — os tornam vítimas frequentes de engodos e mistificações. Essa ingenuidade espírita é o que ameniza, não raro demasiadamente, as dificuldades da liderança espírita. O receio de fazer mau juízo do próximo, de critica-lo injustamente, faltando com a tolerância e a caridade, leva indivíduos e instituições a situações difíceis e embaraçosas.




Tipos de Liderança


Há dois tipos básicos de liderança espírita, decorrentes das necessidades naturais do movimento doutrinário. Podemos considerá-los nas seguintes categorias, segundo suas posições sociais, grau de cultura e funções que exercem nas instituições doutrinárias:


1ª — Líderes Doutrinários — Fundadores, presidentes e diretores de instituições. Constituem uma categoria de liderança austera, de tipo paternalista, semelhante à dos anciãos judeus e à dos apóstolos e dirigentes de comunidades na Era Apostólica. São homens e mulheres respeitáveis dedicados à doutrina, dotados de mediunidade ou de grande experiência na prática mediúnica, na direção do culto e na orientação administrativa. Tornam-se conselheiros naturais da comunidade e exemplos de moralidade. Sabem expor com facilidade os princípios doutrinários, orientar os neófitos, refutar as críticas e agressões dos adversários. Caracteriza-os o respeito pela Doutrina, com repulsa às inovações de práticas doutrinárias e à mistura de elementos estranhos, provenientes de outras correntes espiritualistas.


Até o final da década de 1920 a figura patriarcal desses líderes natos era comum em todo o Brasil. Cercados de respeito, admiração e até mesmo de veneração, fisicamente caracterizados por suas barbas longas e brancas, bigodes espessos, ou por cavanhaques brancos e pontudos, bigodes penteados, eles representavam o patriarcado espírita e os sólidos baluartes da doutrina inviolável. Estudavam as obras de Kardec e Léon Denis, de Ernesto Bozzano e Gabriel Delane. Firmavam-se nas pesquisas científicas de William Crookes, Alexandre Aksakof,  †  Charles Richet e outros luminares da época e rejeitavam sistematicamente a mistificação de Roustaing, que apenas o grupo da Federação Espírita Brasileira, no Rio, sustentava e divulgava, como ainda hoje o faz, com apoio de alguns grupos do Norte e Nordeste e uma minoria do extremo-sul. O bom senso os guiava na interpretação prática dos ensinos de Kardec, o Codificador.


As transformações políticas dos Anos 1930, com a queda da I República e quebra do Café, o período Getulista e suas reformas, depois a I Guerra Mundial e o desenvolvimento forçado da industrialização, o panorama nacional modificou-se profundamente e o panorama espírita foi afetado. A geração dos patriarcas desapareceu rapidamente. O Mundo entrava na fase acelerada de transição que os Espíritos haviam anunciado a Kardec (como se vê em Obras Póstumas) e os horrores da II Guerra Mundial faziam brotar as gerações do desespero. Lembro-me da figura patriarcal de João Leão Pita (o Velho Pita, companheiro de Cairbar Schutel) em seus últimos dias de vida terrena, no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Suas longas barbas brancas e seus olhos azuis lembravam o velho Batuira, já então no Além. Pita, intransigente e lúcido, corajoso e temido encerrava a Era Patriarcal do Espiritismo Brasileiro. As novas gerações assumiam a liderança de um movimento órfão, aturdidas e inseguras. Deviam, segundo a lei das sucessões, reelaborar as experiências das gerações anteriores, mas não dispunham das condições necessárias. Novos líderes surgiram ansiosos por impor-se no panorama espírita, excitados por novidades e desprovidos de bases sólidas no tocante ao conhecimento doutrinário. Teorias antigas, como folhas secas sopradas pelos ventos do mundo desvairado, vinham das catacumbas de múmias do Egito, das vastidões da Índia e da Mesopotâmia, renovar a mentalidade espírita mal formada e pior informada. As instituições doutrinárias, mal dirigidas por líderes vaidosos e convencidos de sua sabedoria eclética, assistidos por sub-líderes subservientes, não dispunham mais, em suas raízes secas, da seiva necessária para uma reação defensiva. Caminhamos assim, de deturpação em deturpação, através de disparatadas acusações de erros de Kardec, para os mistifórios mais absurdos. A tentativa de criação de um Espiritismo corpuscular para substituir toda a obra kardeciana fracassou por falta de lógica. Os manuais, cursos e até mesmo um tratado de mediunidade em que os minerais, os vegetais e os animais figuravam como médiuns, resultaram numa seita de fanatismo. A tentativa delirante de dividir em duas partes a obra de Kardec e converter o Mestre em figura de lenda simplória afogou-se no seu próprio ridículo.


Mas a vaidade e a ignorância de mãos dadas tinham ainda um último golpe a tentar. Os novos líderes espíritas, embriagados pelo prestígio popular conseguiriam traçar um plano geral de aviltamento da Doutrina e efetivar o primeiro passo: a adulteração da obra mais popular de Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Essa profanação de gentio, como a classificou o poeta Rudmar Augusto, provocou a indignação das pessoas de bom-senso e dos adeptos fiéis da Doutrina, selada historicamente pela condenação maciça do Congresso Estadual da União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo. Apesar dessa vitória da dignidade doutrinária, trinta mil volumes adulterados já haviam sido trocados pelas moedas de Judas e infestado o movimento espírita brasileiro.


A insensibilidade dos novos líderes não lhes permitiu renunciar aos seus postos de liderança rejeitada. Continuaram em seus lugares e tentaram ainda mais um golpe: a destruição da USE [União das Sociedades Espíritas do Estado] pela sua absorção nos quadros profanados da Federação. Perderam mais essa cartada mas não se deram por achados. O excesso de tolerância e a inconsciência da maioria responsável pela instituição, a incompreensão da gravidade do caso de adulteração oficial dos textos doutrinárias permitiram passivamente a continuidade das lideranças falidas. Tudo isso nos mostra a distância que se estendeu, o vácuo aberto entre duas épocas: a dos líderes natos e respeitáveis do passado e a dos líderes levianos e inconsequentes do presente. Nesta fase de aviltamento da espécie humana em todo o mundo, não houve condições para o restabelecimento da austeridade espírita em termos de respeito pela Doutrina e moralização dos quadros doutrinários. Onde os líderes não revelam capacidade de liderança a massa perde o rumo e a convicção doutrinária é substituída pelo aviltamento das consciências. Foi assim que o Cristianismo entrou no eclipse medieval e restabeleceu a mitologia e a idolatria que o Cristo condenara em termos candentes, com expressões vigorosas que os adulteradores modernos procuraram substituir por frases ambíguas e ridículas nos textos evangélicos e na obra de Kardec.


Assim traçado esse panorama sombrio, com as cores quentes da realidade ainda palpitante — demonstrado em fatos clamorosos e inegáveis as consequências da falta de convicção e austeridade no trato dos problemas doutrinários, podemos voltar à análise do problema das lideranças.


2ª — Líderes Mediúnicos — A liderança mediúnica exerce-se em três áreas distintas: na popular, indo geralmente além dos limites espíritas, com repercussão sobre a população em geral: na institucional, influindo na atividade e na orientação das instituições; na de divulgação, através de mensagens psicográficas distribuídas à imprensa e aos centros e grupos doutrinários, oferecendo-lhes novos recursos para o esclarecimento de problemas de comportamento individual e coletivo, bem como através de livros mediúnicos que enriquecem a bibliografia espírita e incentivam os estudos doutrinários e marcam a presença ativa dos Espíritos no campo cultural-evangélico. Os médiuns que se destacam nessa liderança influem sobre os outros médiuns e dão-lhes orientação e incentivo à produtividade. Esses líderes mediúnicos exercem ainda uma função de grande importância na orientação moral do povo, alargando a influência e a expansão do Espiritismo, influindo na aceitação da mediunidade como fato natural. Funcionam como os oráculos da Antiguidade, procurados por consulentes espíritas e não espíritas, consolando criaturas desalentadas por casos dolorosos ocorridos na família, justificando o título de Consolador conferido à Doutrina pela tradição evangélica. O Espiritismo se apresenta, através, deles, como o cumprimento da Promessa do Consolador, feita por Jesus. A liderança mediúnica tem assim um papel Fundamental no meio espírita. É dela que brota a orientação espiritual do movimento espírita, é nela que as outras lideranças se apoiam para o desenvolvimento de suas atividades. Por isso, a responsabilidade dos médiuns, que sempre se colocam, queiram ou não, na posição de líderes, é a de um termômetro que deve marcar a temperatura do movimento doutrinário e regulá-la na revelação dos dados necessários. É no exame atento desses dados — ensinos, orientações, advertências, estímulo — que os demais líderes podem acompanhar as curvas de ascensão e declínio da temperatura. Cabe particularmente aos líderes doutrinários e aos líderes intelectuais vigiar o funcionamento desse termômetro coletivo e corrigir os seus desvios e os seus momentos de inibição. Segundo o método kardeciano de aplicação do bom-senso e da razão esclarecida na rigorosa análise da produção mediúnica, sem se deixarem influenciar pelo antigo e perigoso prestígio do sobrenatural. Os médiuns são instrumentos humanos, sujeitos a todos os condicionamentos da espécie, podendo incidir em sintonias perturbadoras ou cair em apatia diante de situações conflitivas e difíceis do processo espírita. O guia seguro da liderança mediúnica é o Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. É na leitura e estudo constante desse livro que os médiuns encontram o esclarecimento dos seus mais complexos problemas. Todos os demais livros sobre mediunidade, alguns alarmantemente afastados da realidade espírita, devem ser rigorosamente conferidos com O Livro dos Médiuns de Kardec. Sem esse critério todos os líderes e seus auxiliares correm o risco de enganos fatais.

3ª — Líderes Intelectuais — Os líderes intelectuais do movimento espírita são os intelectuais-espíritas que se dedicam à doutrina, que a estudam com afinco e perseverança, mantendo-se em atividade constante no plano doutrinário. Um intelectual pode ser espírita sem que seja precisamente um intelectual-espírita ou um líder intelectual. A expressão intelectual-espírita corresponde a uma categoria doutrinária bem definida. É um intelectual que se dedica ao Espiritismo, que assimilou a doutrina e integrou-se na mundividência espírita. Vivendo a doutrina no plano da inteligência e da cultura ele se torna naturalmente um líder intetectual espírita. Sem essa vivência e essa dedicação ao estudo e à pesquisa doutrinária ele será simplesmente um espírita dotado de intelectualidade, mas sem as condições necessárias à liderança intelectual espírita. É o mesmo que acontece com os cientistas ou os pesquisadores universitários que são espíritas, mas não se integram no campo doutrinário. O cientista espírita é aquele que se dedica à Ciência Espírita e contribui para o seu desenvolvimento com trabalhos e obras válidas, reconhecidas como tal pelo consenso geral e pelo consenso espírita. Os líderes espíritas intelectuais pertencem a todas as categorias do mundo intelectual: cientistas, filósofos, ensaístas, especialistas em comunicação, professores, médicos e assim por diante. Mas a legitimidade da sua condição de líder depende da sua atividade permanente no campo espírita, reconhecida pelas lideranças espíritas. Esse reconhecimento não depende de formalidades de nenhuma espécie. É o reconhecimento espontâneo do meio intelectual espírita. Este meio intelectual se define como a conjugação de pessoas habilitadas e experientes do meio intelectual comum para o trabalho intelectual espírita. Não podemos incluir nesse meio pessoas sem habilitação intelectual, por mais dedicadas que sejam à causa doutrinária. Só podemos obter um consenso intelectual espírita de um agrupamento de intelectuais. Como podem opinar, por exemplo, sobre questões de Ciência e Filosofia, de Religião e História ou Psicologia das Religiões, pessoas que não tenham conhecimento e experiência dessas matérias? É o mesmo que se pedir a um pedreiro que opine sobre questões de Botânica. A falta de compreensão desse problema tem provocado lamentáveis equívocos e situações desastrosas, como no caso da adulteração. Não se trata de preferência ou exclusivismo, mas do velho adágio: cada macaco no seu galho. Sem esse critério metodológico os macacos acabam invadindo as lojas de louças.




Psicologia dos Líderes


Podemos agora encarar o problema da Psicologia da Liderança Espírita, tomando como objeto os tipos de líderes de que tratamos. A tipologia da liderança espírita é elemento básico para a apreciação psicológica que devemos fazer. Não se trata de um estudo aprofundado da questão, mas de uma apreciação resultante da observação das diversas tipologias de conjunto das formas de liderança espírita. Necessitamos de trabalho mais metódico e profundo sobre este grave problema, mas é evidente que temos de iniciar a sua abordagem reunindo dados da observação e da experiência para desenvolvimento de pesquisas indispensáveis à boa orientação do movimento espírita, hoje entregue a si mesmo como um barco à deriva. O exemplo metodológico de Kardec foi posto de lado pela nossa incúria e os resultados desse descaso já nos levaram à confusão e ao ridículo. Tratemos de aproveitar essa amarga experiência antes de cairmos em novas situações humilhantes. Vejamos o que se pode fazer com os poucos dados que possuímos.


1ª Categoria — Lideres Doutrinários — A psicologia dos líderes doutrinários natos, fundadores e dirigentes das primeiras instituições espíritas no Brasil, define-se a partir da formação religiosa do nosso povo. Aqueles varões barbados e austeros dos primeiros tempos saíram das barbas bíblicas de Moisés, passaram pelas barbaças amedrontadoras do Padre Eterno católico-romano e revoltaram-se contra a mitologia católica nas barbas ardentes de Guerra Junqueiro. Sua psicologia, individual e coletiva, enraizava-se na crença e no medo. Esses dois fatores determinavam a a sua austeridade. Crentes na existência de Deus e criados no temor a Deus. encontraram no Espiritismo a porta de escape de que necessitavam para livrar-se da mordaça dogmática e entrar no uso da razão, sem caírem no abuso das concepções positivistas e materialistas do século passado. Nasceram de novo e reconheceram em Kardec o Messias que os arrancara do túmulo. A crença em Deus tornou-se conhecimento racional de Deus e o medo do pecado em respeito pelas leis de Deus. Essas leis não estavam nas Tábuas da Lei de Moisés, mas na própria estrutura da Natureza, englobando a natureza humana. O Decálogo não precisava da autoridade de Moisés, fundava-se na autoridade direta de Deus, o Criador, transferindo para o plano humano a ordem geral da Natureza. As leis de Deus eram as leis naturais, como ensinava Kardec, e os mandamentos do Sinai podiam ser lidos na consciência de cada criatura humana. Esse fundamento panteísta explicava os mistérios da imanência, onipresença e onipotência de Deus, sem cair no panteísmo extremado que confunde Deus com a Natureza, o Criador com a Criação. Essa concepção transformara-se logo, à luz da evidência racional, em sólida convicção. Este é o segredo da firmeza e coragem com que enfrentaram o mundo hostil dominado pelo clero intolerante, pelos intelectuais ateus, pelo povo fanático, pelos tradicionalistas agressivos e pela fascinação mágica das formas de sincretismo religioso afro-brasileiro em desenvolvimento. Os pronunciamentos acadêmicos, particularmente de médicos empenhados em mostrar que o Espiritismo era uma fábrica de loucos, não os abalava. Eles se sentiam firmes em sua convicção e sabiam que os pseudo-sábios que tentavam abala-la não conheciam a Doutrina Espírita: falavam do que não sabiam.


Os resultados da prática mediúnica eram palpáveis e visíveis, como sempre o foram. Fortalecidos pela razão kardeciana e pela realidade dos fatos, esses líderes eram inabaláveis. Daí o seu profundo respeito à Doutrina, cuja lógica não podia ser contestada e cuja fenomenologia era confirmada pelas pesquisas de cientistas europeus que eram expoentes do saber da época. O sentimento religioso que os embalara na infância e na adolescência não fora chocado nem ferido por Kardec, que se limitara a explica-lo como lei natural da espécie humana. A moral evangélica, fundamento ético da estrutura social, tornava-se mais vigorosa á luz da doutrina e despia-se da roupagem negra das superstições. A dignidade humana se engrandecia, com as provas da imortalidade. Ninguém era alijado da presença de Deus nem deslocado da ordem social e moral em desenvolvimento. Todos os conteúdos do psiquismo individual eram esclarecidos pela Escala Espírita, esse esquema da evolução espiritual, que tanto se aplicava aos espíritos desencarnados quanto aos encarnados, esclarecendo situações e comportamentos antes considerados na pauta misteriosa das influências diabólicas. O Diabo era colocado no panteão mitológico e Kardec mostrava que o Inferno mitológico era mais racional e humano que o Inferno católico.


O sentimento de segurança, o amor de Deus substituindo o temor, a oração suprimindo indulgências, confissões e sacramentos, reduzia o formalismo religioso em loja de bijuterias. O racionalismo do século enriquecia-se com os elementos vitais da fé raciocinada e a fé crescia e frutificava à luz da razão. É o que podemos ver na bibliografia espírita da época, especialmente nas obras de Bezerra de Menezes, o médico e católico eminente que se tornara espírita. A mistificação roustainguista, tipicamente católica e carregada de resíduos bíblicos, foi apenas tolerada por Bezerra, empenhado em evitar cisões no movimento espírita nascente. Ele proclamava em suas crônicas espíritas do jornal O Paiz: Kardec é insuperável, evitava entrar em discussões inúteis com os fanáticos roustainguistas.


Algumas referências de Bezerra à obra de Roustaing são dos seus primeiros tempos de conversão. Formado no Catolicismo, com uma vivencia longa de católico devoto, Bezerra não estava ainda bem integrado na posição espírita quando lhe chegou às mãos a obra mistificadora. Vendo que Roustaing pretendia restabelecer no Espiritismo a divindade de Cristo, a sua natureza sobrenatural, e influenciado pelos roustainguistas, encarou a obra com simpatia. Mas depois firmou-se em Kardec definitivamente. A natureza aberta da Doutrina Espírita e o espírito liberal de Bezerra o levou a não atiçar os ânimos. Além disso, não queria fracassar em seu intento de manter a união dos espíritas, ainda tão poucos no tempo. Mas o seu apego a Kardec foi tão fiel que o chamaram de Kardec Brasileiro. Temos nesse episódio uma prova da psicologia da liderança de Bezerra, que, sem atritos, conseguiu o seu intento mantendo e proclamando sua fidelidade irredutível a Kardec.


Podemos resumir assim a psicologia da liderança espírita da geração dos barbaças: convicção plena da verdade doutrinária, coragem inabalável na sustentação e defesa da doutrina, concessões internas para evitar cisões numa fase crítica. proclamação pública da grandeza e insuperabilidade de Kardec, confiança na razão na sua vitória perante as criaturas de bom-senso, respeito às convicções alheias, sem ceder nas convicções próprias, austeridade e nobreza na sustentação e defesa dos princípios doutrinários, respeito absoluto aos textos originais de Kardec. Esse respeito e a convicção dos barbaças é o que falta. infelizmente, a grande número dos líderes atuais, que não vacilam em lançar à venda livros deturpados e ridicularizantes para a doutrina, prejudicando-a moral e intelectualmente, para não se perder o dinheiro empatado na profanação. Os interesses materiais se sobrepõe aos interesses espirituais.


A Psicologia de liderança dos líderes doutrinários atuais é quase uma inversão da que esquematizamos acima. Sob a influência das grandes transformações do mundo a que já aludimos, os líderes atuais não encontram na doutrina a segurança dos antigos. Fundadores e dirigentes de instituições estão livres das pressões que os antigos tinham de combater. O Espiritismo está hoje amparado pelo referendo das Ciências e impõe-se ao mundo cultural como representação de uma realidade incontestável. Em lugar do sentimento de segurança dos barbaças, os líderes barbeados de hoje sentem a insegurança do mundo que desaba ao seu redor e procuram meias de adaptar-se às novas condições. A falta quase absoluta de uma compreensão real da doutrina (por falta de estudos aprofundadas da sua natureza e sua posição epistemológica) não lhes permite perceber que o Espiritismo não está ruindo com o velho mundo, mas alicerçando espiritualmente o novo mundo que vai nascer. Ao invés de se firmarem na convicção doutrinária, amedrontam-se com o tumulto das novidades que surgem de todos os lados e acham que a doutrina estagnou-se num mundo em mudança. Buscam adaptar a doutrina às novas condições, para salvá-la, e nesse engano grotesco a ameaçam de deturpações e retrocessos. Estão em pânico os líderes doutrinários atuais, na sua maioria, por incúria e ignorância, por falta absoluta de visão-espírita. O exemplo da adulteração pode ilustrar essa situação. O grupo da Federação Espírita do Estado de São Paulo entendeu (e o declarou na própria edição adulterada de O Evangelho Segundo o Espiritismo) que as igrejas cristãs estão passando os velhos textos da Bíblia para a linguagem atual, e isso com grande sucesso. O Espiritismo ficaria atrasado e era necessário acertar o seu passo com essas inovações profanadoras. Não perceberam que a posição das igrejas é retrógada, enquanto a do Espiritismo é atualíssima e até mesmo futuróloga. Desesperaram-se ao não encontrar o que mudar nos textos de Kardec e puseram-se a deturpá-los, certos de que salvavam a doutrina, e quando chamados à atenção explicaram ingenuamente que faziam experiências de novas formas de comunicação! Escudaram-se em expressões ambíguas usadas em mensagens mediúnicas, considerando-as arbitrariamente como linguagem atual. Na verdade, tratava-se de expressões que não tinham e não têm nenhum curso na atualidade da língua, reduzindo-se a uma aplicação restrita e infelizmente errônea. Pensaram que o barco afundava, e, na aflição de salvá-lo o viraram de borco. Episódio típico dos momentos de pânico. Demonstração inegável de falta de conhecimento doutrinário e assustadora falta de convicção espírita. Aturdidos ante a confusão, quiseram furtar-se à responsabilidade e a lançaram na conta de um líder mediúnico, o de maior prestígio, Chico Xavier. Mas o médium, que também se aturdiu com a trapalhada, acabou declarando que nada tinha a ver com a adulteração, sustentando, pelo contrário, a necessidade de preservação da pureza original dos textos. O fato é significativo e exige meditação de todos os que se interessam pela preservação da doutrina.


Mas outra prova de insegurança e medo surgiu logo mais, com a exigência de destruição da edição adulterada, que comprometia a doutrina. Ante a ameaça de vultoso prejuízo em dinheiro, os líderes em pânico alegaram a necessidade de venda da edição para que as obras da nova sede da Federação não fossem interrompidas. Entrava, assim, um novo fator na questão. A nova sede ia salvar o Espiritismo de uma derrocada material, de ordem patrimonial, garantindo a sua presença monumental nos novos tempos. Os líderes confundiam a instituição espírita com as catedrais ameaçadas pelas transformações da atualidade. Não compreendiam que as edificações, por mais importantes que sejam nada representam na projeção futura da Doutrina. O que importava preservar era a Doutrina e não as obras materiais e muito menos o dinheiro desastradamente empatado na profanação das obras doutrinárias. Cegueira espiritual absoluta, domínio das trevas no Plano espiritual. Os líderes preferiram o prejuízo moral, a profanação da doutrina, a ridicularização das obras modelares de Kardec, ao esvaziamento corajoso dos cofres. Por outro lado, revelando a extensão assustadora da crise espiritual, a maioria absoluta dos líderes, no Brasil inteiro, preferiram o silêncio acumpliciador ao protesto dignificante. Valia mais as acomodações de lideranças diversas, num conluio tácito estarrecedor, como se todos dissessem consigo mesmos: “Que se vão os princípios, mas fiquem os cruzeiros!” E ficaram realmente, ficaram os cruzeiros [atualmente reais] nos cofres, tilintando como as moedas de Judas. Enquanto isso, trinta mil volumes adulterados eram semeados no seio do povo, lançando as raízes nefastas de futuras confusões doutrinárias.


Tudo isso revela a incapacidade dos líderes atuais, cujo psiquismo abalado pela insegurança, o temor e a ignorância, e sobretudo a falta de convicção doutrinária, constitui a perigosa psicologia da liderança no movimento espírita desta hora de transição. As reuniões do grupo adulterador foram privativas sem a participação de elementos experimentados e conhecedores da doutrina. Guardavam um segredo medroso. Obstinavam-se em fazer tudo sozinhos, entre quatro paredes. Praticava-se o crime perfeito contra a doutrina, não haveria testemunhas. O meio espírita teria de receber o choque de um fato consumado. Os diretores da instituição estiveram ausentes, segundo declararam quando o escândalo explodiu. A venda de grande parte da edição foi feita às pressas e sem falar-se em modificações dos textos. O tradutor escolhido não tinha conhecimento das regras de tradução e na verdade não traduziu, decalcou traduções facilmente identificáveis. Quando os volumes foram postos à venda livre e os protestos surgiram, fizeram tudo para abafá-los e clamaram em manifesto que o assunto não devia ser tratado em público. A liberdade espírita era sacrificada nas exigências de medidas confessionais. A doutrina não pertencia ao mundo, mas a um grupo, inexperiente e desprovido de condições para a execução de uma simples tradução. Todos esses aspectos do caso revelam a tônica dominante do medo. Podemos reduzir a esse sentimento toda a psicologia da liderança espírita nesta hora de medo mundial. Mas porque esse medo no Espiritismo, doutrina sem segredos nem mistérios, aberta aos ventos da renovação que ela mesma prega, doutrina que é o roteiro das transformações e constitui a plataforma do mundo futuro? A resposta já foi dada, mas é bom insistir: porque falta aos líderes atuais o principal elemento da psicologia da liderança, que é o conhecimento doutrinário e consequentemente a convicção espírita. E ao perguntarmos pelo porquê dessa falta absurda a resposta será: falta de estudo, de interesse e de amor pela doutrina. A leviandade deste final de século infiltrou-se no meio espírita e a febre de inovações insensatas invadiu as instituições. A virulência dessa infestação demonstrou que o vírus da irresponsabilidade só pode ser combatido com uma renovação imediata e total das lideranças. Não há o que fazer com a psicologia do medo e da ignorância, senão alijá-la.


2ª Categoria — Líderes Mediúnicos — A Psicologia da Liderança Mediúnica é a própria Psicologia do Médium. Porque o médium é um líder nato, quer no seu grupo, quer em relação com o público em geral. Sua condição de intermediário o obriga a isso. Mas neste vasto país mediúnico só temos um médium capaz de liderança nacional, que é Chico Xavier. Só ele revelou até hoje condições para essa função esmagadora. Por isso está chegando à exaustão. E por isso o tentaram envolver, como escudo de extremo recurso, no caso da adulteração. Meio século de mediunidade sem descanso, enfrentando entrechoques doutrinários contínuos, ataques e críticas de opositores de toda a espécie, são mais que suficientes para destruir um gigante. Mas Chico Xavier resistiu até agora, graças a uma convicção inabalável e uma paciência muito superior a de Jó. É nele, na sua frágil figura humana e na indomável fortaleza espiritual, que encontramos o modelo da liderança mediúnica. Revelando mais uma vez o poder da humildade como no caso do infinitesimal na corrida atômica, o Invisível desafia, nele, todo o aparente poderio visível. Chico Xavier provou que só uma força pode se opor a todas as forças do mundo e vencê-las: a força da Humildade. Repetiu a façanha de Francisco de Assis perante o poderio maciço do Vaticano. O poder do médium se chama Humildade. Quando ele a perde, perde-se a si mesmo. Se temos só um líder mediúnico para mais de cem milhões de habitantes e não sabemos quantos milhões de médiuns, é porque a maioria dos nossos médiuns se perdeu em pretensões estúpidas e dissipações inócuas de suas faculdades.


O médium só exerce a liderança de maneira efetiva e eficaz quando não quer ser líder e se recolhe à sua humildade. As forças do Céu agem na Terra ao inverso das condições terrenas. Psicologicamente o médium é a imagem do hermafrodita grego da era arcaica. É uma criatura dupla, ou seja, duas criaturas ligadas pelas costas, com dois rostos, quatro braços e quatro pernas, girando rapidamente no intermúndio em busca do Reino dos Deuses. Mas quando deixam de girar para subir e se acomodam na Terra, Zeus os corta com um golpe de espada e os reduz à condição normal da humanidade. Perdem a condição de líderes e se tornam ovelhas do rebanho comum.


A Psicologia do Médium é paranormal. Suas percepções extravasam dos órgãos sensoriais para captar as dimensões do invisível. Se examinar-se a si mesmo jamais temerá a morte, pois convive com os mortos, que na verdade não morreram. A liderança mediúnica não é do médium, mas das entidades espirituais que dele se servem. Mas ele é dono de si mesmo e os Espíritos não podem dominar as suas faculdades sem o seu consentimento. Isso o faz participar da liderança. Chico Xavier aceitou a orientação de Emmanuel, ligou-se a essa entidade e com ela passou a servir sem perguntar a quem. Não alimentou ambições terrenas e nunca pretendeu ser líder. Por essa renúncia a si mesmo tornou-se o líder mediúnico nacional. Mas Emmanuel respeitou o modo de ser do médium. Limitou a liderança de ambos ao plano moral e espiritual. Sua influência no plano doutrinário foi sempre indireta. Evitou manifestar-se diretamente sobre as graves questões doutrinárias do nosso meio. Mesmo no caso da adulteração, quando o seu pronunciamento através de Chico Xavier teria efeito decisivo, preferiu manter-se distante. Quando a situação exigiu uma intervenção esclarecedora, preferiu que Chico a fizesse na sua condição de médium. Uma questão de respeito ao livre-arbítrio dos homens, que devem aprender por si mesmos em suas experiências. Esse fato revela a posição dos Espíritos Superiores em face das lutas humanas ao mesmo tempo desmente as falsas teorias espiritualistas de que os médiuns são criaturas inteiramente passivas, dominadas pelos espíritos. Se os médiuns da Federação compreendessem isso não teriam permanecidos alheios à profanação da doutrina. Revelariam desejo de intervir e os Espíritos Superiores se serviriam deles. Ao que sabemos, houve pelo menos um médium que desejou intervir e recebeu mensagens enérgicas que foram sonegadas ao conhecimento geral. Os médiuns estão sujeitos a essas reações do ambiente, mas não são obrigados a permanecerem num ambiente negativo. Faltou instrução aos médiuns para que não se portassem como carneiros.


Na psicologia dos médiuns influem os elementos de sua formação religiosa. Nossos médiuns têm formação igrejeira ou para-igrejeira que o ensino espírita devia superar. Mas quando os líderes doutrinários também sofrem das influências igrejeiras não têm condições para auxiliar os médiuns. A humildade mediúnica é de desprendimento das pretensões terrenas, mas não de submissão aos sistemas religiosos errôneos que o Espiritismo vem reformar. A incompreensão geral desse problema transforma nossos médiuns em criaturas místicas, cheias do antigo temor a Deus em lugar do amor a Deus. Nossas escolas de médiuns surgiram impregnadas de resíduos místicos e mágicos, divorciadas da realidade nova que o Espiritismo nos apresenta. Se Chico Xavier tivesse cursado uma dessas escolas jamais se tornaria num líder mediúnico, não se livraria (e só o conseguiu em parte) do cheiro de incenso e da fascinação dos altares floridos. Mesmo conservando parte desses resíduos, Chico Xavier aprendeu muito na convivência direta com os Espíritos e teve a coragem de romper com os laços mais comprometedores da sua formação católica. Esses problemas precisam ser encarados de frente por líderes doutrinários e intelectuais realmente esclarecidos, capazes de dar aos médiuns uma orientação espírita. Sem um critério mais rigoroso de programação de cursos e uma escolha mais cuidadosa de expositores capazes, cursos e escolas se tornam Prejudiciais. Seria preferível a sua substituição por séries de palestras com sequência didática e posteriores debates a respeito, coordenadas por pessoas habilitadas.


3ª Categoria — Líderes Intelectuais — A Psicologia do Intelectual pode ser definida como um conflito dialético entre as suas aspirações e a realidade. Temos assim uma realidade subjetiva, tecida de anseios e pressupostos, e uma realidade objetiva que a ela se opõe. O conflito psicológico é dialético, um verdadeira diálogo secreto do qual deve resultar a síntese de uma posição intelectual definida e, portanto, depurada dos excessos subjetivos, que vão sempre além do concreto real. Esta é a situação geral dos homens na vida, mas no intelectual ela se agrava e se complica pela influência da imaginação. O intelectual espírita dispõe de maiores recursos para atingir a síntese, graças ao conhecimento doutrinário e das pesquisas científicas dos fenômenos mediúnicos. Esse conhecimento lhe proporciona uma realidade intermediária, que é a da realidade espiritual comprovada e não apenas imaginada. A doutrina lhe oferece os recursos metodológicos para estabelecer a ligação (que podemos chamar de perispirítica) entre o seu mundo interior e o mundo exterior. Só agora as Ciências começam a oferecer essa vantagem aos demais intelectuais. Essa defasagem entre a Ciência Materialista vai desaparecendo na proporção em que esta avança nos rumos daquela. Mas o intelectual espírita já tem a sua posição firmada e pode agir com segurança no terreno intermediário. Não obstante, corre o risco, se não tiver conhecimento e experiência suficientes de tentar conciliações utópicas, levado pela imaginação. Sem o rigoroso critério de Kardec, podem tomar a Nuvem por Juno, ver discos-voadores em cintilações estelares e assim por diante. Por isso, a liderança intelectual espírita só pode ser exercida por intelectuais perfeitamente integrados nos princípios kardecianos. Não se trata de uma forma de sectarismo, pois Kardec não fundou nenhuma seita, mas de uma exigência da própria evolução do Espiritismo, cujas leis somente Kardec definiu até hoje de maneira lógica, verificada e verificável.


Vejamos um exemplo concreto, que poderá esclarecer melhor este problema. Ilustre intelectual, de formação universitária, afirmou numa palestra pública em São Paulo, que o Espiritismo peca por exclusivismo antropológico, só admitindo a existência de espíritos humanos, sem levar em conta os gnomos, as fadas e outros seres espirituais chamados elementares em outras correntes do pensamento espiritualista. Foi advertido pelo espírita que presidia à reunião de que se enganava. De fato, o Espiritismo não trata especificamente dessas idealizações folclóricas, mas considera o processo evolutivo dos seres como um desenvolvimento sequente e progressivo de potencialidades espirituais. Assim, os seres inferiores pertencem ao campo da filogênese ôntica, nas fases antecedentes à humanização. Desde a ameba até o homem a linha da evolução desfila uma sequência espantosa de formas espirituais, que correspondem, na teoria espírita da evolução, à filogênese das teorias científicas, com sua imensa variedade de seres anteriores ao homem. A imaginação levava o orador para os caminhos da fantasia, por falta de conhecimento doutrinário. Outros formularam teorias mediúnicas que vão da pedra até o homem, confundindo a ação do espírito sobre a matéria com a mediunidade propriamente dita, e com isso fundaram escolas confusionistas. Há toda uma literatura do absurdo apresentada como desenvolvimento da doutrina e superação de Kardec. O fato de um intelectual contribuir com suas luzes para a divulgação do Espiritismo e mesmo para o seu progresso é importante, mas sob a condição de primeiro adquirir o necessário conhecimento da doutrina. Pode ser muito interessante falar-se em fadas, gnomos, silfos e ondinas, desde que, com isso, não se queira remeter o Espiritismo ao campo da mitologia e da superstição. A liderança intelectual é indispensável ao Espiritismo. Mas não podemos admitir as divagações intelectualistas na área doutrinária. A Ciência Espírita tem os seus métodos de pesquisa e avaliação de fenômenos, não de fantasia.




A Cultura Espírita


O processo cultural, sempre em desenvolvimento, é uma sequência de etapas ou ciclos culturais formando um continuum. Mesmo no estudo das culturas ilhadas da mais alta Antiguidade encontramos sempre os seus liames e conotações. A Cultura Espírita não é uma exceção e se liga a todo o processo. Enganam-se os que desejam adquirir cultura espírita pura. Hoje, mais do que nunca, o Espiritismo, em todos os seus aspectos, está ligado à chamada Cultura Geral. Os métodos culturais de pesquisa, avaliação e interpretação dos fenômenos, de observação e de cogitação filosófica são fundamentalmente os mesmos num campo e no outro, com as especificações necessárias nas áreas especificas. Esse é um dos postulados de Kardec, cuja visão global da Cultura não excluía nenhum setor do Conhecimento. Para se conhecer e compreender o Espiritismo a fundo é indispensável um esforço de atualização cultural, sem o que não seria possível o estabelecimento de ligações entre fatos e conceitos aparentemente diversos. Daí a necessidade de criação e instalação da sonhada Universidade Espírita ou de várias delas, para que a instrução espírita possa atingir as suas verdadeiras dimensões.


A finalidade do Espiritismo não é criar um mundo isolado dentro do mundo, mas integrar-se no mundo para transformá-lo. Os que ontem consideravam isso como apenas um sonho de lunáticos, hoje devem compreender que o sonho está se concretizando no mundo sublunar, não na Lua. É inacreditável o descuido dos espíritas de posses nesse sentido. Todos estão dispostos a fazer gordas doações a instituições assistenciais, mas se mostram avessos a contribuir para a criação de uma Universidade Espírita. Alguns intelectuais chegam mesmo a considerar absurdo esse projeto. O primeiro Congresso da USE [União das Sociedades Espíritas do Estado] criou, graças à luta de alguns contra a oposição da própria diretoria desse movimento, o Instituto Espírita de Educação que até hoje funciona por mercê de alguns abnegados, com pouca possibilidade de desenvolver-se. Os que pensam ganhar o Céu com doações de caridade material, esquecendo a caridade cultural, terão sérias decepções ao passarem para o outro lado. A Educação Espírita, combatida por alguns retrógrados, incapazes de compreender o valor da própria cultura que os acolhe generosamente no mundo, é a mais premente necessidade do movimento espírita, para que não mais se repitam episódios dolorosos como o do planejamento de adulteração de toda a obra de Kardec por pessoas que nem sequer a compreenderam. Esta análise é um esforço no sentido de despertar o nosso meio espírita para os perigos que o ameaçam. Nada mais.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir