O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Instruções psicofônicas — Autores diversos


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Consciência ferida

Na noite de 23 de setembro de 1954, recebemos pela segunda vez a presença de Maria da Glória, n uma entidade sofredora que se devota agora à nossa casa.

Regressando ao nosso círculo de orações com a palavra falada, trouxe-nos, nessa noite, a sua história comovente, que passamos a transcrever.


1 Meus amigos.

Deus nos ampare.

2 Depois de minha primeira visita, eis que torno à vossa casa, que funcionou para mim como um ninho de socorro e um tribunal de justiça.

3 Mulher padecente, trazia enlaçado a mim, qual se fora erva sufocante sobre árvore ferida, o Espírito revoltado de meu próprio filho, cuja reencarnação impedi, num processo de aborto, no qual, por minha vez, perdi a existência.

4 Leviana e surda ao dever, adquiri compromissos com a maternidade, detestando-a.

5 E, por odiar o rebento que me palpitava no seio, procurei destruí-lo, usando venenosa beberagem que igualmente me furtou a vida corpórea.

6 Entretanto, se supunha que a morte fosse um ponto final à minha tragédia íntima, estava profundamente enganada, porque da poça de sangue a que se me reduziram os despojos, levantou-se, diante de mim, uma sombra acusadora.

7 A princípio, dessa nuvem amorfa nascia o choro incessante de uma criança recém-nata.

8 Tentando emudecer aqueles vagidos angustiosos, inutilmente rezei, usando orações decoradas na infância…

9 A nuvem, porém, jazia algemada ao meu próprio peito, através de laços cuja consistência ainda hoje não posso definir.

10 Abandonei, amedrontada, o meu aposento de mulher solteira e, esquecendo o culto do prazer a que me dedicara, procurei fugir, como se eu pudesse escapar de mim mesma.

11 Perdi a ideia de rumo…

Esqueci o calendário.

De minha memória desapareceu a noção de tempo.

12 Guardava a consciência de que a nuvem e eu corríamos sem cessar…

13 Houve, contudo, um momento em que a sombra se converteu na forma de um homem, que me perseguia, amaldiçoando:

— Desnaturada! Assassina!… Assassina!…

14 Anelei, assim, depois da morte, a vinda de outra morte que me afundasse no esquecimento.

15 Sentindo sede, debruçava-me no charco…

16 Torturada de fome, atirava-me aos detritos dos animais mortos no campo…

17 Ah! Como será possível alguém adivinhar na Terra, enquanto a bênção do corpo físico é uma graça para o Espírito que opera entre os homens, o tormento da consciência que edificou em si mesma o inferno que a envolve?

18 Minha existência passou a ser um suplício constante, terrível, inominável…

Chegou, todavia, a noite em que, à maneira de náufrago fatigado, vim dar à praia de vosso templo.

19 Mãos amigas apartaram-me da sombra agressiva a que me prendia, agoniada…

O alívio surgiu, por fim…

20 Entretanto, de alma conturbada, roguei esclarecimento para o meu desvario, embora conhecendo a minha culpa de pecadora penitente.

Recebi, de imediato, a resposta.

21 Um de vossos amigos, n — justamente aquele que me acompanha aqui, nesta noite, com fins educativos, — submeteu-me a longa intervenção magnética e, fazendo com que minhas reminiscências recuassem no tempo, vi-me no Rio, menina mal-nascida, amparada por nobre mulher.

22 Para ser mais explícita, devo adiantar que essa criatura era Dona Mariana Carlota, a Condessa de Belmonte, aia do Imperador D. Pedro II, ainda criança.

23 Fui conduzida ao leito de pálida menina enferma, que morria pouco a pouco…

24 Essa menina era a Princesa Dona Paula, que se afeiçoou a mim, com natural carinho.

Mas, por morte dela, eu ficava aos treze anos novamente desamparada.

25 No entanto, benfeitores do palácio estenderam-me braços generosos e fui mantida em São Cristóvão, na posição de criada humilde.

26 Aos vinte de idade, desposei um artesão da Casa Real.

Miguel era o nome de meu marido.

Duas filhas vieram ao nosso encontro.

27 A tentação dos prazeres carnais, porém, fascinava-me o Espírito inferior.

Foi assim que aceitei a proposta indigna de um homem que me arrancou do lar para delituosa aventura.

28 Na tela de minhas recordações, surgiu então a noite do dia 4 de setembro de 1843, noite festiva que consagrou o casamento daquele que era o Imperador do Brasil.

29 Mulher moça, esposa e mãe, olvidei minhas obrigações e fui à procura de quem passara a ser o adversário de minha felicidade, a fim de receber-lhe a companhia, na rua Direita, junto ao Arco do Triunfo, com o qual se comemorava a grande cerimônia.

30 O Rio, nessa data, acolhia a nova imperatriz dos brasileiros.

É necessário me detenha nesses fatos, — esclarece o benfeitor que me auxilia, — para marcar em nossa lição que o tempo não desaparece com o passado, continuando vivo em nosso presente, como estará também vivo para nós, no grande futuro…

31 Na noite a que me reporto, fui surpreendida por meu esposo, numa atitude de desconsideração aos compromissos que abraçara.

32 Miguel não resistiu.

Respondeu-me à loucura com o suicídio.

33 Transformou-se-me, então, a vida.

Dificuldades sobrevieram.

Enjeitei minhas filhas.

34 Partilhei o destino do aventureiro que, em seguida à minha irreflexão, me atirou ao resvaladouro das mulheres de ninguém…

35 Entretanto, a sombra de meu companheiro suicida nunca mais se apagou de meus passos.

Seguiu-me, não obstante desencarnado, agravou-me as provações e reuniu-se a mim, quando me desliguei do corpo de carne, num asilo de alienados mentais, depois de atribulada peregrinação pelo meretrício.

Escuros tempos assomaram-me à lembrança.

36 O caminho expiatório é um trilho de sofrimentos e reparações, e nós éramos dois condenados, respirando a escuridão de noite profunda…

37 Uma noite imensa, povoada de gemidos, de blasfêmias, de dor… até que renasci na carne, novamente em corpo de mulher. Amando-me e odiando-me ao mesmo tempo, Miguel intentara ser meu filho, contudo, arruinei-lhe os propósitos, recusando a maternidade menos feliz, retornando nós dois, desse modo, às trevas de onde vínhamos.

38 Agora, tudo de novo a recomeçar…

Um século, meus amigos…

Um século de um erro a outro erro…

39 Vede o martírio da mulher que em cem anos nada mais fez senão transviar-se por invigilância!

40 De 1943 até o ano findo, padecimentos novos me exacerbaram a luta, até que a prece e o amor me socorreram.

41 Venho, pois, compartilhar-vos a oração, a fim de que me renove, de modo a partir dignamente ao encontro do esposo que buscou reaproximar-se de mim, na condição de filho, para, de alguma sorte, ensaiarmos juntos a jornada reparadora.

42 Com a presente narrativa, não tenho outro intuito senão dizer-vos que a vida está continuando…

Que o trabalho não cessa…

Que o tempo não morre…

43 E que ai daqueles que caem, porque o soerguimento, muitas vezes, constitui fogo e fel no coração.

44 Sou um Espírito em reajuste.

Alguém que vos bate à porta, rogando amparo.

45 Pobre mulher que fala às outras, avisando-as quanto ao flagelo que nos aguarda, cada vez que o nosso coração foge aos princípios superiores da senda de elevação…

46 Expresso-me, assim, porque os homens, até certo ponto, são produto de nossa influência e domínio.

47 Os homens que nos partilham o leito, que se nutrem do pão que amassamos, que nos absorvem os pensamentos e que nos ouvem as palavras são nossos filhos e nossos irmãos, dependendo de nós para a vitória da Justiça e do Bem.

48 Que o Senhor nos dê consciência de nosso mandato! Que as companheiras presentes me ajudem com as suas preces, aproveitando igualmente a experiência aflitiva da mísera irmã que, em se perdendo, há tanto tempo, ainda não conseguiu recuperar-se…

Que Deus nos ilumine!…


Maria da Glória



[1] Refere-se a entidade a um dos Benfeitores Espirituais que nos assistem as tarefas. — Nota do organizador.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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