O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Caminhos do amor — Maria Dolores


9


Transformação

1 Desencantado, quanto à própria vida,
Resolvera, agitado,
Colocar todo escrúpulo de lado
E fazer-se suicida.


2 Caíra a noite muito fria
E ele pensava:
De que lhe valeria
Tanta posse que, há muito, desfrutava?
De que lhe serviria
A bela moradia,
Tocada de supremo reconforto,
Se trazia no peito
O coração cansado e semi-morto?


3 Vivia desgostoso e insatisfeito…
A esposa o abandonara
Com sinais evidentes de loucura
E arrancara-lhe a filha
Que lhe era tão cara
Para o campo de sombra e de aventura…


4 Dizendo adeus aos mimos familiares,
Deixou o próprio carro e demandou a rua,
Queria caminhar com os seus próprios pesares
E seguiu, sob a noite fria e escura,
No intuito de alcançar antiga ponte,
De seu conhecimento,
Que se lhe erguia agora, em desafio
Para a liquidação de todo sofrimento
Ante a morte no rio…


5 Não havia avançado muitos metros,
Quando ouviu na calçada
A voz de pobre mãe agoniada:
— Senhor, salve meu filho,
Por amor a Jesus, e lhe rogo socorro…
Parou, vendo a mulher e a criança doente,
Tendo a pedra por leito e a marquise por forro…
Tateou o pequeno
Que lhe enviava o olhar quase sem brilho
E entendeu num instante
Que o menino lutava contra a morte,
Sob a pneumonia fulminante.


6 Cedeu farta moeda à mãe aflita
E depois de chamar por táxi vizinho,
Instalou mãe e filho com carinho
No carro que os levasse ao próximo hospital.


7 Que lhe importava agora o ouro da carteira,
Se admitia estar na hora derradeira?


8 Não dera muitos passos
E encontrou um ancião deitado a um canto,
A lhe pedir em voz recortada de pranto:
— Uma esmola, senhor! Um café que me aqueça!
Deus lhe dará em dobro o bem que me fizer…


9 Entregou ao pedinte uma certa quantia
E ao notar-lhe a alegria,
Indagou espontâneo: — O senhor tem família?
E o velhinho falou, de olhar vago e incomum:
— Esse luxo, hoje em dia, não me cabe,
Não sei se o senhor sabe
Que um mendigo não tem parente algum.
E pondo-se de pé,
A erguer-se devagar,
Arrastou-se, pensando no café,
À procura de um bar…


10 O nosso companheiro
Continuou a caminhar;
Surgia a ponte à vista,
Mas na parte de cima havia muita gente
Dedicada ao lazer.
Ele surpreendido e descontente,
Ágil, pôs-se a descer
Buscando a solidão das grandes águas
Para a extinção de suas próprias mágoas…


11 Mas nisso, foi detido,
Por um colega conhecido
Que lhe informou com gentileza:
Amigo, mais prudência,
Há sob a ponte enorme delinquência,
Dizem que aí por baixo há cenas revoltantes
De foragidos e assaltantes…
E sei que sob a guarda de uma bruxa
Moram juntos aí, dois terríveis bandidos,
Claramente escondidos…


12 O interpelado agradeceu
E disfarçou dizendo estar ali somente
À busca de um parente.


13 Atingindo, porém, o local que buscava
Viu tristes mãos ao seio aconchegando
Criancinhas em bando
A chorarem com frio…
Já não mais contemplou a vastidão do rio
E passou a estudar
O apoio que lhes era necessário.


14 Examinando o ambiente
Divisou de repente
Um pequeno recanto solitário
Qual barraca formada de improviso…
Avançou para lá, mas tristonha senhora
Disse-lhe em alta voz: — Senhor, não se aproxime!…
Ele obtemperou:
— Corre-se aqui o risco de algum crime?
A velhinha, no entanto, respondeu:
— Não, senhor!… É que eu
Tenho comigo aqui meus dois filhos leprosos,
Quis somente avisá-lo…
O senhor, entretanto, pode vê-los.


15 Ele fitou os jovens deformados,
As feridas em sangue entre os cabelos,
A pele em chaga, as magras mãos
A sorrirem na prova que sem dedos os feria
Demonstrando, decerto,
A valorização da própria luta,
No fel do dia a dia.


16 “Ah!…” — refletiu — “seriam eles
Os estranhos segredos
Que se ocultavam sob a ponte antiga,
Ante os cuidados da mendiga…”


17 Ao sentir, de tão perto, o sofrimento,
Mudou-se-lhe, de chofre, o pensamento…
Medita, sob a angústia que o invade:
“Por que morrer, chorando a esposa e a filha,
Se elas duas
Apenas lhe pediam a liberdade?
Por que aniquilar-se, inutilmente,
Se podia amparar a tanta gente?
Por que menosprezar a vida alheia?”


18 Então, ajoelhou-se sobre a areia,
Orando a soluçar…
O rio parecia acompanhar
Os gemidos que o homem desferia…
E, como a expulsar de si, em tremenda agonia,
A própria dor que atingira apogeus,
Relegou o suicídio às sombras do passado
E gritou, renovado:
— Obrigado, meu Deus!…


Maria Dolores


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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