O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XII — Março de 1869.

(Idioma francês)

A carne é fraca.

Estudo fisiológico e moral. n
(Sumário)

1. — Há inclinações viciosas que, evidentemente, são inerentes ao Espírito, porque se devem mais ao moral do que ao físico; outras mais parecem consequência do organismo e, por este motivo, nós nos julgamos menos responsáveis; tais são as predisposições à cólera, à indolência, à sensualidade, etc.

Está hoje perfeitamente reconhecido, pelos filósofos espiritualistas, que os órgãos cerebrais correspondentes às diversas aptidões, devem o seu desenvolvimento à atividade do Espírito; que esse desenvolvimento é, assim, um efeito e não uma causa. Um homem não é músico porque tenha a bossa da música, mas tem a bossa da música porque seu Espírito é músico. (Revista de julho de 1860 e abril de 1862.)

Se a atividade do Espírito reage sobre o cérebro, deve reagir igualmente sobre as outras partes do organismo. Assim, o Espírito é o artífice de seu próprio corpo, que, a bem dizer, modela, a fim de apropriá-lo às suas necessidades e à manifestação de suas tendências. Assim sendo, a perfeição do corpo nas raças adiantadas seria o resultado do trabalho do Espírito, que aperfeiçoa a sua ferramenta à medida que aumentam as suas faculdades. (A Gênese segundo o Espiritismo, capítulo XI, “Gênese espiritual”.)


2. — Por uma consequência natural deste princípio, as disposições morais do Espírito devem modificar as qualidades do sangue, dar-lhe maior ou menor atividade, provocar uma secreção mais ou menos abundante de bile ou outros fluidos. É assim, por exemplo, que o glutão sente vir a saliva ou, como se diz vulgarmente, a água à boca à vista de um prato apetitoso. Não é o alimento que superexcita o órgão do paladar, pois não há contato; é o Espírito, cuja sensualidade é despertada, que age pelo pensamento sobre esse órgão, enquanto a vista daquele prato nada produz sobre outro Espírito. Dá-se o mesmo em todas as cobiças, em todos os desejos provocados pela vista. A diversidade das emoções não pode explicar-se, numa porção de casos, senão pela diversidade das qualidades do Espírito. Tal a razão pela qual uma pessoa sensível chora facilmente; não é a abundância das lágrimas que dá a sensibilidade ao Espírito, mas a sensibilidade do Espírito que provoca a secreção abundante de lágrimas. Sob o império da sensibilidade, o organismo modelou-se sob esta disposição normal do Espírito, como se modelou sob a do Espírito glutão.

Seguindo esta ordem de ideias, compreende-se que um Espírito irascível deve levar ao temperamento bilioso; donde se segue que um homem não é colérico porque seja bilioso, mas que é bilioso porque é colérico. Dá-se o mesmo com todas as outras disposições instintivas; um Espírito mole e indolente deixará o seu organismo num estado de atonia em conformidade com o seu caráter, ao passo que, se for ativo e enérgico, dará ao seu sangue, aos seus nervos, qualidades completamente diferentes. A ação do Espírito sobre o físico é de tal modo evidente que, muitas vezes, se veem graves desordens orgânicas produzidas por efeito de violentas comoções morais. A expressão vulgar: A emoção lhe fez subir o sangue, não é assim tão desprovida de sentido quanto se podia crer. Ora, o que pôde alterar o sangue, senão as disposições morais do Espírito?

Este efeito é sensível sobretudo nas grandes dores, nas grandes alegrias, nos grandes pavores, cuja reação pode até causar a morte. Veem-se pessoas que morrem do medo de morrer. Ora, que relação existe entre o corpo do indivíduo e o objeto que lhe causa pavor, objeto que, no mais das vezes, não tem qualquer realidade? Diz-se que é o efeito da imaginação; seja; mas o que é a imaginação, senão um atributo, um modo de sensibilidade do Espírito? Parece difícil atribuir a imaginação aos músculos e aos nervos, pois, então, não se explicaria por que esses músculos e esses nervos nem sempre têm imaginação; por que não a têm após a morte; por que o que nuns causa um pavor mortal, superexcita a coragem em outros.


2. — Seja qual for a sutileza que se use para explicar os fenômenos morais exclusivamente pelas propriedades da matéria, cai-se inevitavelmente num impasse, no fundo do qual se percebe, com toda a evidência, e como única posição possível, o ser espiritual independente, para quem o organismo não passa de um meio de manifestação, como o piano é o instrumento das manifestações do pensamento do músico. Assim como o músico afina o seu piano, pode-se dizer que o Espírito afina o seu corpo para pô-lo no diapasão de suas disposições morais.


4. — É realmente curioso ver o materialismo falar incessantemente da necessidade de resgatar a dignidade do homem, quando se esforça por reduzi-lo a um pedaço de carne, que apodrece e desaparece sem deixar qualquer vestígio; de reivindicar para ele a liberdade como um direito natural, quando o transforma num mecanismo, agindo como um autômato, sem responsabilidade por seus atos.

Com o ser espiritual independente, preexistente e sobrevivente ao corpo, a responsabilidade é absoluta. Ora, para o maior número, o primeiro, o principal móvel da crença no niilismo, é o pavor que causa essa responsabilidade, fora da lei humana, e à qual se crê escapar, tapando os olhos. Até hoje esta responsabilidade nada tinha de bem definido; não era senão um medo vago, fundado, é preciso reconhecer, em crenças nem sempre admissíveis pela razão; o Espiritismo a demonstra como uma realidade patente, efetiva, sem restrição, como uma consequência natural da espiritualidade do ser. Eis por que certas pessoas têm medo do Espiritismo, que as perturbaria em sua quietude, erguendo à sua frente o temível tribunal do futuro. Provar que o homem é responsável por todos os seus atos é provar a sua liberdade de ação, e provar a sua liberdade é resgatar a sua dignidade. A perspectiva da responsabilidade fora da lei humana é o mais poderoso elemento moralizador: é o objetivo ao qual conduz o Espiritismo pela força das coisas.


5. — Conforme as observações fisiológicas que precedem, pode-se, pois, admitir que o temperamento é, ao menos em parte, determinado pela natureza do Espírito, que é causa e não efeito. Dizemos em parte, porque há casos em que o físico evidentemente influi sobre o moral: é quando um estado mórbido ou anormal é determinado por uma causa externa, acidental, independente do Espírito, como a temperatura, o clima, os vícios hereditários de constituição, um mal-estar passageiro, etc. O moral do Espírito pode, então, ser afetado em suas manifestações pelo estado patológico, sem que sua natureza intrínseca seja modificada.

Desculpar-se de suas más ações com a fraqueza da carne não é senão um subterfúgio para escapar à responsabilidade. A carne só é fraca porque o Espírito é fraco, o que derruba a questão e deixa ao Espírito a responsabilidade de todos os seus atos. A carne, que nem tem pensamento nem vontade, jamais prevalece sobre o Espírito, que é o ser pensante e voluntarioso. É o Espírito que dá à carne as qualidades correspondentes aos seus instintos, como um artista imprime à sua obra material o cunho de seu gênio. Liberto dos instintos da bestialidade, o Espírito modela um corpo, que não é mais um tirano para as suas aspirações à espiritualidade de seu ser é então que o homem come para viver, porque viver é uma necessidade, mas não vive mais para comer.


6. — A responsabilidade moral dos atos da vida fica, pois, inteira; mas, diz a razão que as consequências desta responsabilidade devem estar na razão do desenvolvimento intelectual do espírito; quanto mais esclarecido, menos desculpável, porque, com a inteligência e o senso moral, nascem as noções do bem e do mal, do justo e do injusto. O selvagem, ainda vizinho da animalidade, que cede ao instinto do animal, comendo o seu semelhante, é, sem contradita, menos culpável do que o homem civilizado que comete uma simples injustiça.


7. — Esta lei ainda encontra sua aplicação na Medicina e dá a razão do insucesso desta em certos casos. Desde que o temperamento é um efeito e não uma causa, os esforços tentados para modificá-lo podem ser paralisados pelas disposições morais do Espírito, que opõe uma resistência inconsciente e neutraliza a ação terapêutica. É, pois, sobre a causa primeira que se deve agir; se não se consegue mudar as disposições morais do Espírito, o pensamento se modificará por si mesmo, sob o império de uma vontade diferente ou, pelo menos, a ação do tratamento médico será secundada, em vez de ser contrariada. Se possível, dai coragem ao poltrão, e vereis cessarem os efeitos fisiológicos do medo; dá-se o mesmo em outras disposições.

Mas, perguntarão, pode o médico do corpo fazer-se médico da alma? Está em suas atribuições fazer-se moralizador de seus doentes? Sim, sem dúvida, em certos limites; é mesmo um dever, que um bom médico jamais negligencia, desde o instante que vê no estado de alma um obstáculo ao restabelecimento da saúde do corpo. O essencial é aplicar o remédio moral com tato, prudência e a propósito, conforme as circunstâncias. Deste ponto de vista, sua ação é forçosamente circunscrita, porquanto, além de não exercer sobre o seu doente senão um ascendente moral, em certa idade é difícil uma transformação do caráter. É, pois, à educação, e sobretudo à primeira educação, que incumbem os cuidados dessa natureza. Quando, desde o berço, a educação for dirigida nesse sentido; quando se aplicar em abafar, em seus germes, as imperfeições morais, como faz com as imperfeições físicas, o médico não mais encontrará, no temperamento, um obstáculo contra o qual a sua ciência muitas vezes é impotente.

Como se vê, é todo um estudo; mas um estudo completamente estéril, enquanto não se levar em conta a ação do elemento espiritual sobre o organismo. Participação incessantemente ativa do elemento espiritual nos fenômenos da vida, tal é a chave da maior parte dos problemas contra os quais se choca a Ciência. Quando esta levar em consideração a ação desse princípio, verá se abrirem à sua frente horizontes inteiramente novos. É a demonstração desta verdade que conduz o Espiritismo.



[1] [Vide: O Céu e o Inferno — 1ª Parte: A carne é fraca.]


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