O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XI — Junho de 1868.

(Idioma francês)

A morte do Sr. Bizet, cura de Sétif.

A fome entre os Espíritos.
(Sumário)

1. — Um dos nossos correspondentes da Argélia nos informa, nos seguintes termos, sobre a morte do Sr. Bizet, cura de Sétif:  † 

“O Sr. Bizet, cura de Sétif, faleceu em 15 de abril, com a idade de quarenta e três anos, vitimado, sem dúvida, pelas fadigas que suportou durante a fome, quando desenvolveu uma atividade e um devotamento verdadeiramente exemplares. Nascido nas cercanias de Viviers,  †  no Departamento do Ardèche, era, há dezessete anos, pastor dessa cidade, onde tinha sabido granjear as simpatias de todos os habitantes, sem distinção de culto, por sua prudência, por sua moderação e a sabedoria de seu caráter.

“Nos primórdios do Espiritismo nesta localidade e, principalmente, quando o Écho de Sétif afirmou altamente esta doutrina, por um instante o Sr. Bizet tinha tido a intenção de a combater; entretanto, absteve-se de entrar numa luta que se estava decidido a sustentar. Depois, tinha lido as vossas obras com atenção. É provavelmente a essa leitura que se deve atribuir a sua reserva cheia de sabedoria, quando lhe foi ordenado ler durante a homilia a famosa pastoral de monsenhor Pavie, bispo de Argel, que qualificava o Espiritismo como a nova vergonha da Argélia. O Sr. Bizet não quis ler em pessoa essa pastoral, do púlpito; fê-lo ler por seu vigário, sem lhe acrescentar nenhum comentário.”


2. — Além disso, extraímos do Journal de Sétif, de 23 de abril, a seguinte passagem do artigo necrológico que publicou sobre o Sr. Bizet:

“No dia seguinte à sua morte, em. 15 de abril, foram celebradas as suas exéquias. Uma missa de réquiem foi cantada às dez horas da manhã, pelo repouso de sua alma; um dos senhores grandes vigários, enviado há alguns dias pelo Sr. bispo, era o oficiante. Não faltou nenhum habitante de Sétif; as diferentes religiões estavam reunidas e misturadas para dizer um adeus ao Sr. cura Bizet. Os árabes, representados por alcaides e magistrados muçulmanos; os israelitas pelo rabino e os principais notáveis dentre eles; os protestantes por seu pastor, lá estavam, rivalizando em zelo e dedicação para prestar ao Sr. abade Bizet um último testemunho de estima, de afeição e de pesar.

“A reunião de tantas comunhões diversas num mesmo sentimento de simpatia é um dos mais belos sucessos conquistados pela caridade cristã que, no curso de seu apostolado em Sétif, não cessou de animar o abade Bizet. Vivendo em meio a uma população que está longe de ser homogênea, e entre a qual se encontram dissidentes de toda sorte, ele soube conservar intacto o legado católico que lhe tinha sido confiado, conservando, ao mesmo tempo, com os que não partilhavam de suas convicções religiosas, relações benevolentes e afetuosas, que lhe valeram as simpatias de todos.

“Mas o que transbordava de todos os corações era a lembrança dos sentimentos de caridade cristã que animavam o Sr. abade Bizet. Sua caridade era doce, paciente, sobretudo durante o longo inverno que acabamos de atravessar, em meio a uma miséria horrível, que tinha posto a seu encargo uma multidão de desgraçados [Vide: A fome na Argélia]. Sua caridade tudo cria, tudo esperava, tudo suportava e jamais desanimava. Foi no meio desse devotamento para socorrer os infelizes esfomeados, ameaçados todos os dias de morrer de frio e de fome, que contraiu o germe da moléstia que o levou deste mundo, se é que já não estava atingido, devido ao zelo excepcional que desenvolveu durante a cólera do verão passado.”


3. — O Sr. Bizet era espírita? ostensivamente, não; interiormente, ignoramo-lo. Se não o era, pelo menos tinha o bom-senso de não lançar anátema a uma crença que conduz a Deus os incrédulos e os indiferentes. Aliás, que nos importa? Era um homem de bem, um verdadeiro cristão, um padre segundo o Evangelho. A este título, se nos tivesse sido hostil, nem por isto os espíritas deixariam de o ter colocado na classe dos homens cuja memória a Humanidade deve honrar e tomar como modelo.


4. — A Sociedade Espírita de Paris quis dar-lhe um testemunho de sua respeitosa simpatia, chamando-o ao seu seio, onde ele deu a seguinte comunicação:


Sociedade de Paris,  †  14 de maio de 1868.

“Estou feliz, senhor, pelo benevolente apelo que houvestes por bem me dirigir, e ao qual considero uma honra e um prazer responder. Se não vim diretamente ao vosso meio, é que a perturbação da separação e o espetáculo novo com que fui ferido não mo permitiram. E, depois, não sabia a quem ouvir; encontrei muitos amigos, cujo simpático acolhimento me ajudou poderosamente a me reconhecer; mas também tive sob os olhos o atroz espetáculo da fome entre os Espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses infelizes, mortos nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer a uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um pedaço de comida que se escondia em suas mãos, dilacerando-se mutuamente e, se posso dizer, se entredevorando; uma cena horrível, pavorosa, ultrapassando tudo quanto a imaginação humana pode conceber de mais desolador!… Muitos desses infelizes me reconheceram, e seu primeiro grito foi: Pão! Era em vão que eu tentava lhes fazer compreender a sua situação; eram surdos às minhas consolações. — Que coisa terrível é a morte em semelhantes condições, e como aquele espetáculo é mesmo susceptível de fazer refletir sobre o nada de certos pensamentos humanos!… Assim, enquanto na Terra se pensa que aqueles que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebe-se do outro lado que não é nada disso, e que o quadro não é menos sombrio, embora os autores tenham mudado de aparência.

“Perguntais se eu era espírita. Se, por esta palavra, entendeis aceitar todas as crenças que a vossa doutrina preconiza, não; eu não chegava até lá. Eu admirava os vossos princípios; julgava-os capazes de trazer a salvação aos que sinceramente os punham em prática; mas tinha minhas reservas sobre um grande número de pontos. Não segui, a vosso respeito, o exemplo de meus confrades e de alguns de meus superiores, que eu interiormente censurava, porque sempre pensei que a intolerância era mãe da incredulidade, e que era preferível ter uma crença que levasse à caridade e à prática do bem, a não a ter absolutamente. Eu era espírita de fato? Não me cabe pronunciar-me a respeito.

“Quanto ao pouco bem que pude fazer, estou realmente confuso com os exagerados elogios de que me tornaram objeto. Quem não teria agido como eu?… Não são ainda mais merecedores do que eu, se nisto há algum mérito, os que se devotaram em socorrer os infelizes árabes, e que a isto não foram levados senão pelo amor do bem?… Para mim a caridade era um dever, em consequência do caráter de que eu estava revestido. Faltando a ela, eu seria culpado, teria mentido a Deus e aos homens, aos quais eu havia consagrado a minha existência. Aliás, quem poderia ter ficado insensível diante de tantas misérias?…

“Vós o vedes, fizeram como sempre: aumentaram enormemente os fatos; cercaram-me de uma espécie de celebridade, que me deixa confuso e magoado e pela qual sofro em meu amor-próprio. Porque, enfim, bem sei que não mereço tudo isto, e estou bem certo, senhor, de que me conhecendo melhor, reduzireis ao seu justo valor o ruído que fazem em volta de mim. Se tenho algum mérito, que mo concedam, concordo; mas que não me levantem um pedestal com uma reputação usurpada: eu não poderia consentir com isto.

“Como vedes, senhor, ainda estou muito recente neste mundo novo para mim, sobretudo muito ignorante e mais desejoso de me instruir do que capaz de instruir os outros. Hoje os vossos princípios me parecem tanto mais justos quanto, depois de ter lido a sua teoria, vejo a sua mais larga aplicação prática. Assim, ficaria feliz em os assimilar completamente e vos seria reconhecido se me aceitásseis algumas vezes como um dos vossos ouvintes.”


Cura Bizet.


Observação. – A quem quer que não conheça a verdadeira constituição do mundo invisível, parecerá estranho que Espíritos, que segundo eles são seres abstratos, imateriais, indefinidos, sem corpo, sejam vítimas dos horrores da fome; mas o espanto cessa quando se sabe que esses mesmos Espíritos são seres como nós; que têm um corpo, fluídico é verdade, mas que não deixa de ser matéria; que, deixando seu invólucro carnal, certos Espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante um tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos ensina que tal é a situação dos Espíritos que viveram mais a vida material do que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão das necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo, nos antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos.

Completamente diversa é a posição dos que, desde esta vida, se desmaterializaram pela elevação de seus pensamentos e sua identificação com a vida futura. Todas as dores da vida corporal cessam com o último suspiro e logo o Espírito plana, radioso, no mundo etéreo, feliz como o prisioneiro liberto de suas cadeias.

Quem nos disse isto? É um sistema, uma teoria? Alguém disse que deveria ser assim e se acredita sob palavra? Não; são os próprios habitantes do mundo invisível que o repetem em todos os pontos do globo, para ensinamento dos encarnados.

Sim, legiões de Espíritos continuam a vida corporal com suas torturas e suas angústias. Mas quais? Os que ainda estão muito avassalados à matéria para dela se desprenderem instantaneamente. É uma crueldade do Ser Supremo? Não; é uma lei da Natureza, inerente ao estado de inferioridade dos Espíritos e necessária ao seu adiantamento; é uma prolongação mista da vida terrena durante alguns dias, alguns meses, alguns anos, conforme o estado moral dos indivíduos. Estariam aptos para tachar de barbárie essa legislação, aqueles que preconizam o dogma das penas eternas, irremissíveis, e as chamas do inferno como um efeito da soberana justiça? Podem eles fazer um paralelo entre a situação temporária, sempre subordinada à vontade do indivíduo de progredir, e a possibilidade de avançar por novas encarnações? Aliás, não depende de cada um escapar a essa vida intermediária, que, francamente, nem é a vida material, nem a vida espiritual? Os espíritas a ela escapam naturalmente, porque, compreendendo o estado do mundo espiritual antes de nele entrar, imediatamente se dão conta de sua situação.

As evocações nos mostram uma multidão de Espíritos que ainda se julgam deste mundo: suicidas, supliciados que não suspeitam que estão mortos e sofrem o seu gênero de morte; outros que assistem ao próprio enterro, como se fosse o de um estranho; avarentos que guardam seus tesouros, soberanos que julgam mandar ainda e que ficam furiosos por não serem obedecidos; depois de grandes desastres marítimos, náufragos que lutam contra o furor das ondas; após uma batalha, soldados que se batem; e, ao lado disto, Espíritos radiosos, que nada mais têm de terrestre e são para os encarnados o que a borboleta é para a lagarta. Pode perguntar-se para que servem as evocações, quando nos dão a conhecer, até nos mais ínfimos detalhes, esse mundo que nos espera a todos, ao sairmos deste? É a Humanidade encarnada que conversa com a Humanidade desencarnada; o prisioneiro que fala com o homem livre. Não, por certo elas nada servem ao homem superficial que nisto só vê um divertimento; elas não lhe servem mais do que a física e a química recreativas para a sua instrução. Mas para o filósofo, observador sério, que pensa no amanhã da vida, é uma grande e salutar lição; é todo um mundo novo que se descobre; é a luz lançada sobre o futuro; é a destruição dos preconceitos seculares sobre a alma e a vida futura; é a sanção da solidariedade universal que liga todos os seres. Dirão que se pode ser enganado; sem dúvida, como se o pode sobre todas as coisas, mesmo as que se vê e se toca; tudo depende da maneira de observar.

O quadro que apresenta o cura Bizet nada tem, pois, de estranho; vem, ao contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já se sabia; e, o que afasta toda ideia de reflexão de pensamentos, é que o fez espontaneamente, sem que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então, teria vindo dizer, sem que se lhe perguntasse, se aquilo era assim ou não? Sem dúvida a isto foi levado para a nossa instrução. Aliás, toda a comunicação traz um cunho de gravidade, de sinceridade e de modéstia, que é bem o seu caráter e que não é próprio dos Espíritos mistificadores.


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