O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VIII — Julho de 1865.

(Idioma francês)

Ária e letra do rei Henrique III.

(Sumário)

1. — O Grand Journal de 4 de junho de 1865 relata o seguinte fato:


“Todos os editores e amantes da música de Paris  †  conhecem o Sr. N. G. Bach, aluno de Zimmermann,   †  primeiro prêmio de piano do Conservatório, no concurso de 1819, um dos nossos mais estimados e mais honrados professores de piano, bisneto do grande Sebastian Bach, cujo nome ilustre porta com dignidade.

“Informado por nosso amigo comum Sr. Dollingen, administrador do Grand Journal, de que o apartamento do Sr. N. G. Bach tinha sido teatro de um verdadeiro prodígio na noite de 5 de maio último, pedi a Dollingen que me levasse à casa do Sr. Bach, e fui acolhido no nº 8 da Rua Castellane  †  com fina cortesia. Creio ser inútil acrescentar que foi depois de ter obtido autorização expressa do herói desta história maravilhosa que me permito contá-la aos meus leitores.

“No dia 4 de maio último, o Sr. Léon Bach, que é um curioso dublê de um artista, trouxe a meu pai uma espineta  †  admiravelmente esculpida. Depois de longas e minuciosas pesquisas, o Sr. Bach descobriu, numa prancha interna, o inventário do instrumento; data do mês de abril de 1564 e foi fabricada em Roma.  † 

“O Sr. Bach passou uma parte do dia na contemplação de sua preciosa espineta. Ao deitar-se pensava nela e, quando o sono vinha cerrar-lhe as pálpebras, ainda pensava no instrumento.

“Não é, pois de admirar que tenha tido o seguinte sonho:

“No mais profundo de seu sono, o Sr. Bach viu aparecer à cabeceira do leito um homem com longa barba, sapatos arredondados na ponta e com grandes laços em cima, um calção muito grande, um gibão de mangas justas com aberturas no alto, um grande colarinho e com um chapéu pontudo e de abas largas.

“Essa personagem curvou-se diante do Sr. Bach e narrou o seguinte:

“A espineta que possuís me pertenceu. Muitas vezes me serviu para distrair meu senhor, o rei Henrique III. Quando ele era muito jovem, compôs uma ária  †  com letra, que gostava de cantar e que eu lhe tocava muitas vezes. Ele compôs a ária e a letra em lembrança de uma mulher que encontrou numa caçada e pela qual se apaixonou. Afastaram-na dele; diz-se que foi envenenada e o rei sofreu uma grande dor. Toda vez que estava triste cantarolava esta romanzan Então, para o distrair eu tocava em minha espineta uma sarabanda de minha composição, que ele apreciava muito. Assim eu associava sempre esses dois trechos e não deixava de tocar um após o outro. Vou fazer-te ouvi-los:

“Então o homem do sonho aproximou-se da espineta, deu alguns acordes e cantou a ária com tanta expressão que o Sr. Bach acordou em pranto. Acendeu uma vela, olhou a hora, constatou que eram duas da madrugada e não tardou a dormir novamente.

“É aqui que começa o extraordinário.

“Pela manhã, ao despertar, o Sr. Bach ficou muito surpreso ao encontrar sobre a cama uma página de música, preenchida com uma escrita muito fina e notas microscópicas. Foi com dificuldade que o Sr. Bach, auxiliado pelo binóculo, já que é bastante míope, conseguiu reconhecer-se em meio a esses rabiscos.

“Um instante depois, o neto de Sebastian sentou ao piano e decifrou o trecho. A romanza,  †  a letra e a sarabanda  †  estavam exatamente conformes às que o homem do sonho lhe fizera ouvir durante o sono!

“Ora, o Sr. Bach não é sonâmbulo; jamais escreveu um único verso em sua vida e as regras da versificação lhe são completamente estranhas.

“Eis o refrão e as três quadras tais quais as copiamos do manuscrito. Conservamos a sua ortografia que, diga-se de passagem, de modo algum é familiar ao Sr. Bach.


        Perdi aquela

Por quem tanto amor nutria;

        Ela é tão bela

Tinha por mim cada dia

        Novo favor

        De anseio ter.

        Sem ela, oh! dor,

        Quero morrer!


Numa caçada longe, ainda matina,

Eu a avistei pela primeira vez,

Imaginei um anjo na campina,

Então senti-me o mais feliz dos reis.


Daria, sim, meu reino para revê-la

Ainda que fosse por um breve instante;

Numa cabana humilde ao lado dela

Para sentir meu coração pulsante.


Enclausurada e triste, oh! minha linda,

Últimos dias seus longe de mim.

Ela não sente mais que a pena é finda;

E quanto a mim, ai, ai! sofrendo assim.


Nesta canção lamentosa, como na sarabanda alegre, que a segue, a ortografia musical não é menos arcaica que a ortografia literária. As claves  †  são feitas de modo diverso daquelas dos nossos dias. O baixo  †  é escrito num tom e o canto em outro. O Sr. Bach teve a delicadeza de me fazer ouvir os dois trechos, que são de uma melodia simples, ingênua e penetrante. Aliás, nossos leitores não tardarão a poder julgá-los com conhecimento de causa. Estão nas mãos dos grandes gravadores e aparecerão no correr desta semana no editor Legouix, no Boulevard Poissonière,  †  nº 27.

“O jornal da Estoile nos informa que o rei Henrique III teve uma grande paixão por Maria de Clèves,  †  marquesa de Isles, morta na flor da idade, numa abadia, no dia 15 de outubro de 1574. Não seria “a pobre, bela e triste enclausurada” a que aludem os versos? O mesmo jornal também nos diz que um músico italiano, chamado Baltazarini, veio à França nessa época e foi um dos favoritos do rei. Teria a espineta pertencido a Baltazarini? Foi o Espírito deste quem escreveu a romança e a sarabanda? – Mistério que não ousamos aprofundar.


Albéric Second.


2. — Depois da letra, o Grand Journal inseriu a música, que lamentamos não poder reproduzir aqui; mas como atualmente se acha à venda, será fácil aos amadores adquiri-la. (Ver as notas bibliográficas.)


O Sr. Albéric Second termina o seu relato por estas palavras:

“Mistério que não ousamos aprofundar!” E por que não o ousais? Eis um fato cuja autenticidade vos é demonstrada, como vós mesmo reconheceis, e, porque diz respeito à vida misteriosa de além-túmulo, não ousais pesquisar-lhe a causa! Tremeis ao olhá-la de frente! Então, mau grado vosso, temeis os fantasmas ou receais adquirir a prova de que nem tudo acaba com a vida do corpo? É verdade que para um céptico, que nada vê e em nada crê além do presente, essa causa é muito difícil de encontrar. Entretanto, por isto mesmo, porque o fato é mais estranho e parece afastar-se das leis conhecidas, deve tanto mais fazer refletir, pelo menos despertar a curiosidade. Dir-se-ia realmente que certas pessoas têm medo de ver muito claro, porque teriam de convencer-se de que se enganaram. Vejamos, contudo, as deduções que todo homem sério pode tirar deste fato, abstração feita de qualquer ideia espírita.

O Sr. Bach recebe um instrumento, cuja antiguidade constata, o que lhe causa grande satisfação. Preocupado com esta ideia, é natural que esta lhe provoque um sonho; vê um homem em costumes da época, tocando aquele instrumento e cantando uma ária da época; a rigor, nada aí que não possa ser atribuído à imaginação superexcitada pela emoção e pela lembrança da véspera, sobretudo num músico. Mas aqui o fenômeno se complica; a ária e a letra não podem ser uma reminiscência, pois os Sr. Bach não as conhecia. Quem, então, lhas revelou, se o homem que lhe apareceu não passa de um ser fantástico, sem vitalidade? Que a imaginação sobreexcitada faça reviver na memória coisas esquecidas, compreende-se; mas teria o poder de nos dar ideias novas? de nos ensinar coisas que não sabemos? que jamais soubemos? com as quais jamais nos ocupamos? Aí estaria um fato gravíssimo e que valeria a pena ser examinado, porquanto seria a prova de que o Espírito age, percebe e concebe independentemente da matéria. Passemos por cima, se se quiser. Estas considerações são de uma ordem tão elevada e tão abstrata que nem a todos é dado perscrutá-las, nem mesmo de sobre elas deter o pensamento.


3. — Vamos ao fato mais material, o mais positivo, o dessa música escrita com a letra. Seria um produto da imaginação? A coisa aí está, palpável, sob os olhos. É aqui que se faz indispensável um exame escrupuloso das circunstâncias. Para não nos lançarmos no campo das hipóteses, digamos, antes de ir mais longe, que o Sr. Bach, que não tínhamos a honra de conhecer, deu-se ao trabalho de nos vir ver e submeter o original da peça em questão. Assim, pudemos colher de seus lábios todos os ensinamentos necessários para esclarecer nossa opinião, ao mesmo tempo que ele retificava nalguns pontos o relato do jornal.

Tudo se passou no sonho exatamente como está indicado; mas não foi na mesma noite que o papel foi trazido. No dia seguinte o Sr. Bach procurava lembrar-se da ária que tinha ouvido; pôs-se à espineta e conseguiu compor a música, embora imperfeitamente. Cerca de três semanas depois, o mesmo indivíduo lhe apareceu novamente; desta vez, cantou a música e a letra e disse que ia dar-lhe um meio para as fixar na memória. Foi então que, ao despertar, encontrou o papel na cama. Tendo-se levantado, decifrou a ária no seu instrumento e reconheceu que era mesmo a que tinha ouvido, bem como a letra, das quais só lhe havia restado uma lembrança confusa.

Reconheceu também o papel, por lhe pertencer; era uma folha dupla de papel de música comum, sobre uma das faces do qual ele havia escrito, pessoalmente, várias coisas. Esse papel, como muitos outros, estava numa secretária fechada, posta num outro aposento da casa. Assim, seria preciso que alguém o tivesse tirado de lá para colocá-lo na cama, enquanto ele dormia. Ora, em casa dele, ninguém do seu conhecimento poderia tê-lo feito. Quem poderia ter sido? Eis o mistério terrível, que o Sr. Albéric Second não ousa aprofundar.

Foi na face em branco da folha que ele encontrou a ária, composta segundo o método e os sinais do tempo. As palavras são escritas com extrema precisão, cada sílaba colocada exatamente sob a nota correspondente. O todo está escrito a lápis. A escrita é muito fina, mas muito clara e muito legível; a forma das letras é característica: é a que se vê nos manuscritos da época.

O Sr. Bach não era céptico, nem materialista e, ainda menos, ateu; mas, como muita gente, pertencia à numerosa classe dos indiferentes, muito pouca preocupada com as questões filosóficas. Só conhecia o Espiritismo de nome. Aquilo que acabava de testemunhar despertou sua atenção; longe de não ousar aprofundar o mistério, disse de si para si: aprofundemo-lo. Leu obras espíritas, começou a perceber e foi com o objetivo de ter mais amplas informações que nos honrou com sua visita. Hoje o fato não tem mais mistérios para ele e lhe parece muito natural; além disso, está muito feliz com a fé e os novos conhecimentos que a circunstância lhe permitiu adquirir. Eis o que ganhou.

Sabe perfeitamente que nem a música, nem a letra, podiam vir dele; não duvidava que lhe tivessem sido ditadas pela personagem que lhe havia aparecido; mas se perguntava quem as tinha podido escrever, ou se não poderia ter sido ele mesmo em estado sonambúlico, conquanto jamais tivesse sido sonâmbulo. A coisa era possível, mas, admitindo-a, apenas provava melhor a independência da alma, como todos os fatos desse gênero, tão curiosos e tão numerosos e com os quais, no entanto, a Ciência jamais se preocupou. Uma particularidade parece destruir esta opinião, a de que a escrita não guarda nenhuma relação com a do Sr. Bach; seria preciso, no estado sonambúlico, que ele mudasse sua letra habitual para tomar a do século dezesseis, o que não é presumível. Seria brincadeira de alguém de sua casa? Mas, admitindo tal intenção, ele tem certeza de que ninguém tinha os conhecimentos necessários para a executar. Ora, se ele, que sonhara, tinha apenas uma lembrança insuficiente para transcrever a letra e a música, como uma pessoa estranha se teria recordado melhor? O cuidado com o qual a coisa estava escrita teria, aliás, exigido muito tempo e requerido uma grande habilidade prática.

Outro ponto importante a esclarecer era o fato histórico dessa primeira paixão do rei, a que nenhuma história faz menção, e que lhe teria inspirado esse cântico melancólico. Tendo o filho do Sr. Bach se dirigido a um de seus amigos adido à biblioteca imperial, a fim de saber se existiria algum documento a respeito, foi-lhe respondido que, se o existisse, só poderia ser no jornal da Estoile, que se publicava na época. Pesquisas feitas imediatamente levaram à descoberta da passagem acima relatada. A mãe de Henrique III [Catarina de Médicis], temendo o domínio que aquela mulher, de um espírito superior, pudesse exercer sobre o seu filho, a fez enclausurar e depois matar. O rei não se conformou com essa perda, da qual conservou profunda magoa durante a toda a vida. Não é singular que esse canto relate precisamente um fato ignorado de todos e, por conseguinte, do Sr. Bach, e que mais tarde se ache confirmado por um documento da época, escondido numa biblioteca? Esta circunstância tem uma importância capital, pois prova de maneira irrecusável que a letra não pode ser uma composição do Sr. Bach, nem de nenhuma pessoa da casa. Toda suposição de fraude cai diante desse fato material.

Só o Espiritismo podia dar a chave desse fato, pelo conhecimento da lei que rege as relações do mundo corporal com o mundo espiritual. Aí nada existe de maravilhoso nem de sobrenatural. Todo o mistério está na existência do mundo invisível, composto das almas que viveram na Terra, e que não interrompem suas relações com os sobreviventes. Mostrai a alguém, ignorante de eletricidade, que se pode corresponder a duzentas léguas em alguns minutos, e isto lhe parecerá miraculoso; explicai a lei da eletricidade e ele achará a coisa muito natural. Dá-se o mesmo com todos os fenômenos espíritas.


4. — Numa sessão da Sociedade Espírita de Paris, à qual assistia o Sr. Bach, o Espírito que lhe havia aparecido deu as explicações seguintes sobre o fato que acabamos de relatar.


(Sociedade Espírita de Paris, 9 de junho de 1865 – Médium: Sr. Morin).

1. Pergunta. – (Ao guia espiritual do médium). Podemos chamar o Espírito que se manifestou ao Sr. Bach?

Resposta. – Meu filho, a grave questão que levou a essa manifestação espontânea é muito natural. Deve ser resolvida esta noite, a fim de não deixar qualquer dúvida sobre a maneira pela qual a música foi feita. O Espírito está aí e responderá muito claramente às perguntas que lhe forem dirigidas.


2. P. – (Ao Espírito que se manifestou ao Sr. Bach). Já que quisestes vir até nós, antecipando-se ao nosso apelo, nós vos seremos reconhecidos se nos derdes a explicação do fenômeno que se produziu por vossa intervenção. Também desejaríamos saber por que o Sr. Bach foi escolhido de preferência para esta manifestação e que participação teve na produção do fenômeno?

Resposta. – Agradeço a benevolência com que me acolheis entre vós. Compreendo a importância que dais a esse fato, que, entretanto, não vos deve espantar, já que esse gênero de manifestação é hoje quase geral e conhecido por muita gente.

Inicialmente, respondo à vossa primeira pergunta. O Sr. Bach foi escolhido por duas razões: a primeira é a simpatia que me une a ele; a segunda é toda no interesse da Doutrina Espírita. Situado como está no mundo, sua idade, sua longa carreira tão honradamente exercida, suas relações com a imprensa e o mundo erudito, dele fizeram o melhor instrumento para dar publicidade a fatos que, até hoje, só eram impressos em jornais espíritas. Já vos disseram muitas vezes que era chegado o dia em que o Espiritismo, conquistando imunidade em toda parte onde há raciocínio, lógica e bom-senso, seria aceito mesmo nos jornais que o denegriram.

Quanto à segunda questão: sim, tendes razão de procurar saber, a fim de não serdes vítimas de equívocos. O transporte — pois é um transporte — foi feito e dele participa o Espírito, que sou eu, e o Sr. Bach, no sonho puro e só em relação com os Espíritos.


Nota.Esta última frase tem sua explicação no artigo adiante, sobre os sonhos.


Eu trouxe ao Sr. Bach o papel de música, que obtive numa peça vizinha de seu quarto, e então a música foi escrita pelo próprio Espírito Bach, que se serviu de seu corpo como meio de transmissão. Eu escrevi a letra, que conhecia. A obra assim feita pode ser considerada como complemento espiritual, visto como o Sr. Bach, em seu sonho, estava quase que completamente desmaterializado.


3. P. – Qualquer pessoa dotada de mediunidade teria servido nesta circunstância?

Resposta. – Não, certamente, porque se o Sr. Bach não tivesse reunido todas as qualidades requeridas, é provável que nem ele nem eu tivéssemos sido escolhidos para essa propagação.


4. P. – Como se serviu o Sr. Bach de seu corpo para escrever a música? Tê-lo-ia feito em estado de sonambulismo?

Resposta. – Eu disse que ele se tinha servido de seu corpo como meio de transmissão, porque seu Espírito ainda está encarnado e não pode agir como Espírito desencarnado. O Espírito encarnado só pode servir-se de seus membros, e não do seu perispírito, pois é o mesmo perispírito que mantém o Espírito ligado ao corpo.


5. P. – Podeis dizer quem compôs a letra?

Resposta. – Se tivesse sido eu, minha grande dose de orgulho lhe guardaria a honra. Mas não; expliquei-me claramente, dizendo: “Escrevi a letra, que conhecia.” Essa letra, assim como a música, são, realmente, como vos foi dito, composição e inspiração própria de meu então senhor, o rei Henrique.


6. P – Seria indiscrição pedir que nos esclarecêsseis sobre a vossa personalidade e nos dissésseis o que éreis sob Henrique III?

Resposta. – Nunca há indiscrição, desde que esteja em jogo um ensinamento moral. Responderei que, tendo partido de minha terra, que era Florença, vim à França e fui introduzido na corte por uma princesa que, tendo-me ouvido cantar, quis agradar ao delfim, pois que ainda o era, fazendo que ouvisse o pobre trovador. O prazer foi tão vivo que resolveram pôr-me à sua disposição, e eu fiquei muito tempo junto a ele a título de músico, mas, na realidade, como amigo; porque ele me quis muito e eu lhe fiz bem. Tendo morrido antes dele, adquiri então a certeza de seu apego a mim, pelo pesar que sentiu com a minha perda. Meu nome foi pronunciado aqui: eu era Baltazarini.


5. — A Sra. Delanne, que assistia à sessão, recebia pela audição respostas idênticas às que eram dadas ao Sr. Morin. No dia seguinte, em sua casa, ela escreveu a comunicação seguinte, que confirma e completa a de Baltazarini.


“Quando é chegada a hora, Deus se serve de todos os meios para fazer penetrar a ciência divina em todas as classes da sociedade. Seja qual for a opinião que se professe em relação às ideias novas, cada um deve servir à causa, ainda que à sua revelia, no meio onde está colocado. Tendo o Espírito Bach vivido sob Henrique III, e tendo sido ligado à pessoa do rei, como amigo íntimo, gostava apaixonadamente de ouvir esses versos e, sobretudo, a música. Preferia a espineta aos outros instrumentos; é por isso que o Espírito que lhe apareceu, e que é mesmo o de Baltazarini, serviu-se desse instrumento, a fim de trazer o Espírito Bach à época em que vivia e lhe mostrar, bem como à Ciência, que a doutrina da reencarnação é confirmada todos os dias por novas provas. O fato da música só teria sido insuficiente para forçar o Sr. Bach a buscar a luz imediatamente. Precisava de um fenômeno do qual não se pudesse dar contas por si mesmo, uma participação completamente inconsciente. Ele devia preconizar a doutrina, contando o fato presente, procurando esclarecer-se quanto à maneira pela qual se tinha produzido, pedindo a todas as inteligências que com ele e de boa-fé buscassem a verdade. Por sua idade respeitável, sua honrosa posição, sua reputação no mundo e na imprensa literária, é uma das primeiras balizas plantadas no mundo rebelde, porque não se pode suspeitar de sua boa-fé, nem o tratar como louco, como não se pode negar a autenticidade da manifestação.

Aliás, ficai convencidos de que tudo isto tinha sua razão de ser. Vedes que a imprensa absteve-se de comentários e, contudo, o artigo foi produzido por um não-crente, um gracejador da Ciência que, só ela, pode dar uma explicação racional do fato mencionado. Deus tem seus desígnios; lança a semente divina no coração quando o julga conveniente. Esse fato terá mais repercussão do que supondes; trabalhai sempre em silêncio e esperai com confiança.

Nós vos temos dito muitas vezes: não vos inquieteis. Deus saberá suscitar no tempo e no lugar homens e fatos que virão levantar os obstáculos e vos confirmar que as bases da doutrina receberam sua sanção pelo Espírito de Verdade. O Espiritismo cresce e se desenvolve; os galhos da árvore abençoada e gigantesca já se estendem por todas as partes do globo. Diariamente o Espiritismo ganha novos adeptos em todas as classes e novas falanges vêm engrossar as fileiras dos desencarnados. Quanto mais difíceis se tornarem os vossos trabalhos, tanto maior será a assistência dos bons Espíritos.”


São Bento. n


Notícias bibliográficas.

[Julho de 1865.]

6.ÁRIA E LETRA compostas pelo rei Henrique III, em 1574, e reveladas num sonho em 1865 ao Sr. N. C. Bach; Legouix, editor, 27, boulevard Poissonnière, Paris. Preço marcado: 3 fr.


[Revista de setembro de 1865.]

Uma explicação a propósito da revelação do Sr. Bach.


7. — Sob o título de Carta de um desconhecido, assinada por Bertelius, o Grand Journal de 18 de junho de 1865, traz a seguinte explicação do fato relatado na Revista Espírita de julho último, relativa à ária do rei Henrique III, revelada em sonho ao Sr. Bach. O autor se apoia exclusivamente no sonambulismo, e parece fazer abstração completa da intervenção dos Espíritos. Embora, sob esse ponto de vista, difiramos de sua maneira de ver, sua explicação não deixa de ser menos sabiamente racional; e se não é, em nossa opinião exata em todos os pontos, contém ideias incontestavelmente verdadeiras e dignas de atenção.

Contra certos magnetizadores ditos fluidistas, que não veem em todos os efeitos magnéticos senão a ação de um fluido material, sem levar a alma em conta, o Sr. Bertelius faz esta representar o papel capital. Ele a apresenta no seu estado de emancipação e de desprendimento da matéria, gozando de faculdades que não possui em estado de vigília. É, pois, uma explicação do ponto de vista completamente espiritualista, se não inteiramente espírita, o que já é alguma coisa para a afirmação da possibilidade do fato por outras vias que não a da materialidade pura, e isto num jornal importante.

É de notar que neste momento se produz, entre os negadores do Espiritismo, uma espécie de reação, ou, antes, forma-se uma terceira opinião, que pode ser considerada como uma transição. Hoje muitos reconhecem a impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria, mas ainda não podem decidir-se a admitir a intervenção dos Espíritos. Procuram sua causa na ação exclusiva da alma encarnada, agindo independentemente dos órgãos materiais. Incontestavelmente é um passo que se deve considerar como uma primeira vitória sobre o materialismo. Da ação independente e isolada da alma, durante a vida, a esta mesma ação depois da morte, a distância não é grande; para aí serão levados pela evidência dos fatos, e pela impossibilidade de tudo explicar apenas com o auxílio do Espírito encarnado.


8. — Eis o artigo publicado no Grand Journal:

“Contando, no penúltimo número do Grand Journal, o fato singular ocorrido com o Sr. G. Bach, fazeis estas perguntas: “A espineta pertenceu a Baltazarini? – Foi o Espírito Baltazarini quem escreveu a romanza e a sarabanda? – Mistério que não ousamos aprofundar.”

“Por favor: por que um homem, que estimo julgar livre de preconceitos, recua diante da pesquisa da verdade? Mistério! – dizeis vós. – Não, senhor; não há mistério. Há uma simples faculdade, com que Deus dotou certos homens, como dotou outros com uma bela voz, com o gênio poético, com o espírito de cálculo, com uma perspicácia rara, faculdades que a educação pode despertar, desenvolver, melhorar. Em contrapartida, existe uma infinidade de outras faculdades conferidas ao homem, e que a civilização, o progresso e a educação aniquilam, em vez de favorecer o seu desenvolvimento.

“Não é verdade, por exemplo, que os povos selvagens têm uma sensibilidade auditiva que não possuímos? que aplicando o ouvido no chão, distinguem o passo de um homem, ou de vários homens, de um cavalo ou de vários cavalos, de um animal selvagem a grande distância?

“Também não é verdade que eles medem o tempo com precisão, sem ampulheta, sem relógio? que dirigem com segurança sua marcha através de florestas virgens, ou suas canoas nos rios e no mar, olhando as estrelas, sem o concurso da bússola e sem qualquer noção de Astronomia? — Enfim não é verdade que curam suas doenças sem médicos? que sabem tratar as picadas dos animais mais. venenosos com ervas simples, que distinguem em meio a tantas outras, e acham aos seus pés? Não se sabe que curam as mais perigosas feridas com terra argilosa? E não podem, como me dizia tão judiciosamente, nos confins dos Estados Unidos, um chefe Pele-Vermelha, que o Grande Ser sempre pôs o remédio ao lado do mal?

“Estas verdades tornaram-se banais de tanto repetidas; mas delas se servem alguns para disfarçar a sua ignorância; outros – a maioria  –  para aí colher matérias para contradições. É tão fácil tomar ares de espírito forte negando tudo! e tão difícil explicar a obra de Deus, cujo segredo buscamos nos livros, quando encontraríamos sua solução na Natureza! Eis o grande livro aberto a todas as inteligências; mas nem todas são feitas para decifrar esses mistérios, porque aí uns leem através de suas prevenções ou seus preconceitos, e outros através de sua insuficiência ou seu orgulho de sábio.

“Servi-vos dos meios mais simples para aprofundar os mistérios da Natureza, e encontrareis a solução, até os limites impostos à inteligência humana por uma inteligência superior.

“Dissestes que o Sr. Bach não é sonâmbulo. Que sabeis disto, e que sabe ele próprio? Afirmo que o Sr. Bach é sonâmbulo, mesmo sem jamais ter tido a honra de o encontrar e sem o conhecer. Nele o sonambulismo ficou em estado latente; foi necessário um acontecimento excepcional, uma sensação muito viva e muito persistente, uma emoção que compreenderão todos os que amam a curiosidade e o saber, para revelar a si mesmo uma faculdade da qual deve ter tido alguns exemplos, que ficaram despercebidos em sua vida, mas dos quais sem dúvida hoje se lembrará, se quiser interrogar o seu passado e refletir.

“De acordo com o que nos informastes, o Sr. Bach empregou uma parte do dia na contemplação de sua preciosa espineta; descobriu o inventário do instrumento (abril de 1564). “Ao deitar-se pensava nela; e quando o sono lhe veio cerrar as pálpebras, ainda pensava no instrumento.”

“O sonâmbulo procede por graus. — Quando quiserdes que ele veja o que se passa em Londres,  †  por exemplo, deveis mencionar que o pondes numa carruagem, que toma uma estrada de ferro, que embarca e atravessa o mar (então, muitas vezes, sente náuseas), que desembarca, retoma a estrada de ferro e, finalmente, chega ao termo de sua viagem.

“O Sr. Bach seguiu a marcha habitual aos sonâmbulos. Tinha virado, revirado, desmontado e examinado detalhadamente a sua espineta; estava cheio desta ideia e, mentalmente, sem nisso pensar, deve ter dito consigo mesmo: “A quem pode ter pertencido esse instrumento?” A corrente magnética – os espíritos fortes não negarão tal corrente – estabeleceu-se entre ele e o instrumento. Adormeceu e caiu no sono natural e, a seguir, passou naturalmente ao estado de sonambulismo. Então procurou, vasculhou no passado e se pôs em comunicação mais íntima com a espineta; deve tê-la virado, sacudido, posto a mão onde pousara a do antigo proprietário do instrumento, há três séculos; e, interrogando o passado, o que é infinitamente mais fácil que ver o futuro, achou-se em contato com esse ser que não mais existe [Este fenômeno é chamado de psicometria].  †  Ele o viu com as suas vestes habituais, executando a ária que tantas vezes o instrumento tocou; ouviu a letra tantas vezes acompanhada e, arrastado por essa força magnética que se chama eletricidade, o Sr. Bach a escreveu, com a própria mão, tão bem quanto hoje se transmite a Lyon  †  um telegrama escrito por vossa mão, com a vossa própria letra. O Sr. Bach escreveu no estado de sonambulismo, repito-o, essa ária e essa letra que jamais tinha ouvido; e, superexcitado por uma emoção muito viva, despertou banhado em lágrimas.

“Gritareis que é impossível. — Pois bem! escutai este fato: — Eu mesmo enviei uma sonâmbula à Inglaterra; ela realizou a viagem, não no sono sonambúlico, mas numa condição que não era o estado inteiramente natural, nem o de sonambulismo completo. — Apenas lhe ordenei que todas as noites dormisse o tempo necessário, naturalmente, e que escrevesse o que deveria fazer para chegar ao resultado que devia alcançar em sua viagem. — Ela não sabia uma palavra de inglês. Não conhecia ninguém. O caso que a preocupava era grave… Ela realizou sua viagem, escreveu todas as noites consultas sobre o que devia fazer, as pessoas que devia ver, os endereços onde as devia encontrar. Seguiu textualmente e ao pé da letra as indicações que se tinha dado, foi à casa de pessoas que não conhecia e das quais jamais ouvira falar e que eram justamente as que tudo podiam… E o fez tão bem que ao cabo de oito dias, um caso que teria exigido anos sem esperança de chegar ao fim, foi resolvido para a sua completa satisfação, e minha sonâmbula voltou depois de ter realizado maravilhas. — No estado natural essa mulher extraordinária é apenas uma pessoa comum.

“Notai este fato: sua letra no sono é completamente diferente da escrita habitual. Foram escritas palavras em inglês, língua que ela não conhece. Conversa comigo em italiano e, acordada, não seria capaz de dizer duas palavras nesse idioma.

“Assim, o próprio Sr. Bach escreveu e anotou, com a própria mão, a ária de Henrique III, embora talvez não reconhecesse sua letra. E o que é mais surpreendente, é que deve duvidar de suas faculdades magnéticas, como a minha sonâmbula que, a esse respeito, é de uma incredulidade tão radical que não se pode falar de magnetismo em sua presença, sem que ela se apresse em declarar que é uma insensatez acreditar nisto.

“E talvez ainda, conquanto não o digais, o Sr. Bach não tinha papel nem tinta. Em Londres minha sonâmbula encontrou sobre a mesa as indicações desejadas escritas a lápis; ela não tinha lápis!… Estou certo de que ela foi vasculhar no hotel, encontrou o lápis de que precisava e o trouxe para o seu quarto, com essa exatidão, essas precauções, essa leveza vaporosa, quase sobrenatural, comum nos sonâmbulos.

“Eu vos poderia citar fatos mais surpreendentes que o do Sr. Bach. Mas por hoje basta. Hesito mesmo em vos enviar estas notas, escritas ao sabor da pena.

“Há vinte anos que magnetizo, mas ocultei, mesmo aos meus melhores amigos, o resultado de minhas descobertas. É tão fácil tachar um homem de loucura! Há tanta gente interessada em pôr a luz debaixo do alqueire! E, acima de tudo, forçoso é dizer, há tantos charlatães que abusaram do magnetismo que seria necessária uma coragem sobre-humana para declarar que dele se ocupa. Seria melhor proclamar que se assassinou pai e mãe do que confessar que se acredita no magnetismo.

“Regra geral, entretanto: não creiais nunca, jamais! em experiências públicas, nos falsos sonâmbulos, que dão consultas mediante dinheiro, e oráculos como as sibilas antigas, que agem e falam à menor ordem e a qualquer hora, diante de um público numeroso, como um autômato habilmente fabricado. É charlatanismo! Nada é mais caprichoso, teimoso, volúvel, birrento e rancoroso que um sonâmbulo. Uma ninharia lhe paralisa as faculdades de segunda vista; uma bagatela o faz mentir por malícia ; um nada o perturba e o faz mudar de rumo, e isto se compreende. Há algo mais susceptível que uma corrente elétrica?

“Eu me afastei de um hábil cientista, o Dr. E…, muito conhecido em Londres, com o qual iniciei minhas primeiras experiências magnéticas, justamente porque sempre considerei como grave falta o abuso do magnetismo. Empolgado pelos resultados miraculosos que obtínhamos, um dia ele quis enxertar o sistema frenológico no magnetismo. Pretendia que, tocando certas saliências da cabeça, o sonâmbulo apresentava a sensação da qual aquela saliência era sede. Tocando o local presumível do canto, o paciente cantava; o da gulodice, ele mastigava no vazio, dizendo que tal comida tinha este ou aquele sabor. E assim por diante.

“Considerei que era levar a experiência longe demais e, sobre um fato real – o sonambulismo – assentar uma ciência problemática: a frenologia.  †  Eu queria ampliar o domínio das descobertas magnéticas, mas não abusar delas, como geralmente se faz.

“Tive a irreverência de declarar ao meu professor que ele se desviava e que eu defendia ser dever de todos quantos conhecem os fenômenos magnéticos se levantarem contra todas essas experiências, cujo único objetivo é satisfazer uma curiosidade ignorante, explorar algumas fraquezas humanas e não o de alcançar um resultado prático para a Humanidade, e útil a todos.

“Mas é mais difícil do que se pensa manter-se nesses limites honestos, quando se chegou a resultados maravilhosos. Os mais fortes magnetizadores se deixam arrastar e, fenômeno ainda mais maravilhoso, quando se chega a ponto de exigir sempre experiências públicas de seu paciente, este parece se perturbar, não tem mais esse imprevisto, essa lucidez, essa clarividência que o distinguiam; torna-se uma máquina automática, que responde sobre um tema dado e cujas faculdades se empobrecem até desaparecerem.

“Infelizmente, pessoas que não ousariam tentar uma simples experiência de física recreativa, que se confessam incapazes de executar o menor truque de prestidigitação, jamais hesitam, sem preparação e sem o menor estudo prévio, em fazer experiências magnéticas.

“Ah! se eu não temesse mergulhar os leitores do vosso Grand Journal num sono menos interessante, porém mais barulhento que o de meus sonâmbulos, eu vos entreteria em breve com fatos eminentemente curiosos… Mas antes é preciso saber que acolhida dareis a esta primeira carta; é o que sábado ficarei sabendo, ao rebentar o lacre de meu exemplar.


Bertellius.


[Revista de fevereiro de 1866.]

A espineta de Henrique III.


9. — O fato seguinte é a continuação da interessante história da Ária e letra do rei Henrique III, relatada na Revista de julho de 1865. Desde então o Sr. Bach tornou-se médium escrevente; mas pratica pouco, devido à fadiga resultante. Só o faz quando incitado por uma força invisível, que se traduz por viva agitação e tremor da mão, porque, então, a resistência é mais penosa que o exercício. É mecânico no mais absoluto sentido da palavra e não tem consciência nem lembrança do que escreve. Um dia em que se achava nessa disposição, escreveu esta quadra:

O rei Henrique dá essa grande espineta

A Baldazzarini, um bom músico então.

E se ela não é boa, elegante, completa

Ao menos trate-a bem, por justa gratidão.

A explicação destes versos, que para o Sr. Bach não tinham sentido, lhe foi dada em prosa.

“O rei Henrique, meu senhor, que me deu a espineta que possuis, tinha escrito uma quadra num pedaço de pergaminho e a mandara pregar no estojo; certa manhã ele ma enviou. Alguns anos mais tarde, tendo de fazer uma viagem, e temendo, já que eu levava minha espineta para fazer música, que o pergaminho fosse arrancado e se perdesse, tirei-o; e para não perdê-lo, coloquei-o num pequeno nicho, à esquerda do teclado, onde ainda se encontra.”


10. — A espineta é a origem dos pianos atuais, na sua maior simplicidade, e se tocava da mesma maneira. Era um pequeno cravo de quatro oitavas, de aproximadamente um metro e meio de comprimento por quarenta centímetros de largura, e sem pés. As cordas, no interior, eram dispostas como nos pianos, e tocadas por meio de teclas. Era transportada à vontade, acondicionada num estojo, como se faz com os baixos e os violoncelos. Para utilizá-la, era posta numa mesa ou sobre um X móvel.

O instrumento estava então em exposição no museu retrospectivo, nos Champs-Elysées,  †  onde não era possível fazer a busca indicada. Quando ela lhe foi devolvida, o Sr. Bach, juntamente com o filho, apressou-se em rebuscar todos os cantos, mas inutilmente, de sorte que a princípio pensou tratar-se de uma mistificação. Entretanto, para nada ter a censurar-se, desmontou-a completamente e descobriu, à esquerda do teclado, entre duas pranchetas, um intervalo tão estreito que nele não se podia introduzir a mão. Explorou esse recanto, cheio de poeira e de teias de aranha, e daí retirou um pedaço de pergaminho dobrado, enegrecido pelo tempo, com trinta e um centímetros de comprimento por sete e meio de largura, sobre o qual estava escrita a quadra seguinte, em caracteres da época, bastante grandes:

Eu, Henrique Terceiro, entrego esta espineta

A Baltasarini, meu músico feliz,

Quanto ao som, o que importa aqui é minha meta:

Dar-lha como lembrança e tê-la como eu quis.

Henrique. n


Esse pergaminho é perfurado nos quatro cantos por furos que, evidentemente, são os dos pregos que serviram para fixá-lo na caixa. Além disso, tem nas bordas uma porção de furos alinhados e regularmente espaçados, que parecem ter sido feitos por preguinhos. Foi exposto na sala de sessões da Sociedade, e todos tivemos o prazer de o examinar, bem como a espineta, na qual o Sr. Bach tocou e cantou a ária e a letra a que nos referimos, e que, como se sabe, lhe foram reveladas em sonho.

Os primeiros versos ditados reproduziam, como se vê, o mesmo pensamento que os do pergaminho, dos quais são a tradução em linguagem moderna, e isto antes que estes últimos fossem descobertos.


11. — O terceiro verso é obscuro e contém, sobretudo, a palavra ma, que parece não ter qualquer sentido e não se ligar à ideia principal, e que, no original, está enquadrada num filete. Inutilmente procuramos a sua explicação, e o próprio Sr. Bach não o sabia. Estando um dia em casa deste último, teve ele, espontaneamente e em minha presença, uma comunicação de Baldazzarini, dada em nossa intenção, vazada nestes termos:


Amico mio

Estou contente contigo; escrevestes esses versos em minha espineta; minha promessa está realizada e agora estou tranquilo (Alusão a outros versos ditados ao Sr. Bach e que Baldazzarini lhe tinha dito que escrevesse no instrumento). Quero dizer uma palavra ao sábio presidente que vem te visitar:

Allan Kardec, ó tu, cujos úteis trabalhos

Instruem cada dia a novos bons obreiros

Não nos trazes jamais quaisquer princípios falhos;

Que os Espíritos bons aclarem teus roteiros.

Preciso é pois lutar, enfim contra a ignorância

Dos que sábios se creem da Terra por jactância.

Não te abatas porém; a tarefa é de dores;

Mas fácil quando o foi aos bons propagadores?

“O rei zombava de meu sotaque em seus versos; eu sempre dizia ma, em vez de mas. Adio, amico.


Baldazzarini. n


“Assim foi dada, sem pergunta prévia, a explicação daquele ma. É o vocábulo italiano que significa mas, intercalado por brincadeira, pelo qual o rei designava Baldazarinni que, como muitos de sua nação, o pronunciava muitas vezes. Assim o rei, dando aquela espineta ao seu músico, lhe disse: Se não é boa, se soa mal, ou se ma (Baldazzarini) a julga muito simples, de pouco valor, que a guarde em seu estojo, como lembrança minha.”

A palavra ma está enquadrada num filete, como se entre parênteses. Certamente por muito tempo teríamos procurado esta explicação, que não podia ser reflexo do pensamento do Sr. Bach, já que ele próprio não a compreendia. Mas o Espírito viu que necessitávamos dela para completar o nosso relato e aproveitou a ocasião para no-la dar, sem que tivéssemos pensado em lha solicitar, porque, quando o Sr. Bach se pôs a escrever, nós ignorávamos, assim como ele, qual era o Espírito que se comunicava.


12. — Restava uma importante questão a resolver, a de saber se a escrita do pergaminho era realmente da mão de Henrique III. O Sr. Bach se dirigiu à Biblioteca Imperial para compará-la com a dos manuscritos originais. De início encontraram alguns que não tinham perfeita similitude, mas apenas um mesmo tipo de letra. Com outras peças a identidade era absoluta, tanto para o corpo da escrita, quanto para a assinatura. Essa diferença provinha de que a caligrafia do rei era variável, circunstância que logo será explicada.

Assim, não podia haver dúvida quanto a autenticidade dessa peça, embora certas pessoas, que professam uma incredulidade radical em relação às coisas ditas sobrenaturais, tenham pretendido que não passava de uma imitação muito exata. Ora, observaremos que aqui não se trata de uma escrita mediúnica, dada pelo Espírito do rei, mas de um manuscrito original, escrito pelo próprio rei, em vida, e que nada tem de mais maravilhoso do que aqueles que circunstâncias fortuitas fazem descobrir diariamente. O maravilhoso, se maravilhoso existe, está apenas na maneira pela qual sua existência foi revelada. É bem certo que se o Sr. Bach se tivesse contentado em dizer que o tinha encontrado por acaso em seu instrumento, não teriam levantado nenhuma objeção.


13. — Estes fatos tinham sido relatados em sessão da Sociedade, de 19 de janeiro de 1866, à qual assistia o Sr. Bach. O Sr. Morin, membro da Sociedade, médium sonâmbulo muito lúcido e que, em seu sono magnético, vê perfeitamente os Espíritos e com eles se entretém, assistia à sessão em estado de sonambulismo. Durante a primeira parte da sessão, consagrada a leituras diversas, à correspondência e ao relato dos fatos, o Sr. Morin, com quem não se ocupavam, parecia em conversa mental com seres invisíveis; ele lhes sorria e trocava com eles apertos de mãos. Quando chegou sua vez de falar, pediram-lhe que designasse os Espíritos que via e rogasse a eles que nos transmitissem, por seu intermédio, o que nos quisessem dizer para nossa instrução. Não lhe foi dirigida uma única pergunta direta. Só mencionamos sumariamente alguns fatos passados, para dar uma ideia do aspecto da sessão e para chegar ao assunto principal que aqui nos ocupa.

Nomeá-los todos, disse ele, seria impossível, pois seu número é muito grande; aliás, há muitos que não conheceis, e que vêm para se instruir. A maioria deles queria falar, mas cedem o lugar aos que, no momento, têm coisas mais importantes a dizer.

Para começar, está ao nosso lado o nosso antigo colega, o último que partiu para o mundo dos Espíritos, o Sr. Didier, que não falta a nenhuma de nossas sessões è que vejo exatamente como em vida, com a mesma fisionomia; dir-se-ia que está aqui com o seu corpo material; apenas não tosse mais. Dá-me conta de suas impressões, de sua opinião sobre as coisas atuais, e me encarrega de vos transmitir suas palavras.

Em seguida vem um rapaz, que se suicidou recentemente em circunstâncias excepcionais e cuja situação descreve, o qual apresenta uma fase, de certo modo nova, do estado de certos suicidas após a morte, em razão das causas determinantes do suicídio e da natureza de seus pensamentos.

Depois vem o Sr. B…, fervoroso espírita, morto há alguns dias, em consequência de uma operação cirúrgica, e que tinha haurido em sua crença e na prece a força para suportar corajosamente e com resignação seus longos sofrimentos. “Que reconhecimento, diz ele, não devo ao Espiritismo! Sem ele certamente teria posto fim às minhas torturas e seria como esse jovem infeliz que acabais de ver. A ideia do suicídio me veio algumas vezes, mas sempre a repeli. Sem isto, como teria sido triste a minha sorte! Hoje sou feliz, oh! muito feliz, e agradeço aos nossos irmãos, que me assistiram com suas preces cheias de caridade. Ah! se soubessem quão doces e salutares eflúvios a prece do coração derrama sobre os sofrimentos!”


14. — “Mas, então, onde me conduzem? continua o sonâmbulo; num abrigo miserável! Lá está um homem ainda jovem, que morre do peito… a miséria é completa: nada para se aquecer, nada para comer! Sua esposa, esgotada de fadiga e de privações, não pode mais trabalhar… Ah! o último triste recurso!… não tem mais cabelos…. cortou-os e vendeu para obter alguns centavos!… Quantos dias isto os fará viver?… É horroroso!”

Solicitado se pode indicar o domicílio dessa pobre gente, disse: “Esperai!” Depois parece escutar o que lhe dizem; toma um lápis e escreve um nome, com indicação da rua e número. Feita a verificação na manhã seguinte, tudo foi achado perfeitamente exato.


15. — Refeito da emoção e voltando seu Espírito ao local da sessão, ele ainda falou de várias outras pessoas e de diversas coisas, que foram para os nossos guias espirituais assunto de instruções de elevado alcance, e que teremos ocasião de referir de outra vez.

De repente exclama: “Mas aqui há Espíritos de toda espécie! Alguns foram príncipes, reis! Um deles avança; tem o rosto longo e pálido, uma barbicha pontuda, uma espécie de gorro encimado por uma centelha. Ele me pede que vos diga:

“O pergaminho de que falastes e que tendes sob os olhos foi mesmo escrito por minha mão, mas, a respeito, eu vos devo uma explicação.

“Em meu tempo não se escrevia com tanta facilidade quanto hoje, sobretudo os homens de minha posição. Os materiais eram menos adequados e menos aperfeiçoados; a escrita era mais lenta, mais grossa, mais pesada; por isso refletia melhor as impressões da alma. Como sabeis, meu humor não era uniforme e, conforme eu estivesse em boa ou má disposição, minha escrita mudava de caráter. É o que explica a diferença que se nota nos meus manuscritos que restam. Quando escrevi esse pergaminho para o meu músico, enviando-lhe a espineta, estava num daqueles momentos de satisfação. Se procurardes em meus manuscritos aqueles cuja letra se assemelha à deste, reconhecereis, pelos assuntos tratados, que eu devia estar num desses bons momentos e aí tereis outra prova de identidade.”


16. — Por ocasião da descoberta deste escrito, do qual falou o Grand Journal em seu número de 14 de janeiro, o mesmo jornal estampa o artigo seguinte, em seu exemplar de 21 de janeiro:

“Esgotemos a questão de correspondência mencionando a carta da Sra. condessa de Martino, relativa à espineta do Sr. Bach. A condessa está persuadida de que o correspondente sobrenatural do Sr. Bach é um impostor, visto que devia assinar Baldazzarini e não Baltazzarini, que é italiano macarrônico.”

Primeiramente faremos notar que essa chicana a propósito da ortografia de um nome próprio é sofrivelmente pueril, e que o epíteto de impostor, em falta do correspondente invisível, no qual não acredita a senhora condessa, cai sobre um homem honrado, o que não é de muito bom-gosto. Em segundo lugar, Baldazzarini, simples músico, espécie de trovador, bem podia não dominar a língua italiana em sua pureza, numa época em que não se dava tanta importância à instrução. Contestariam a identidade de um francês que escrevesse em francês macarrônico, e não se vê gente incapaz de escrever corretamente o próprio nome? Por sua origem, Baldazzarini não devia estar muito acima do macarronismo. Mas essa crítica cai diante de um fato: é que os franceses, pouco familiarizados com as nuanças da ortografia italiana, ouvindo pronunciar esse nome, naturalmente o escrevem à francesa. O próprio rei Henrique III, na quadra encontrada e citada acima, o escreve simplesmente Baltasarini, embora não seja um ignorante. Assim foi com os que enviaram ao Grand Journal o relato do fato em questão. Quanto ao músico, nas diversas comunicações que ditou ao Sr. Bach, e das quais temos em mãos vários originais, assinou Baldazzarini e, às vezes, Baldazzarrini, como se pode confirmar; a falta, pois, não é dele, mas dos que, por ignorância, afrancesaram seu nome, nós em primeiro lugar.

É realmente curioso ver as puerilidades a que se apegam os adversários do Espiritismo, prova evidente da escassez de boas razões.



[1] N. do T.: Grifo nosso.


[2] [v. São Bento.]


[3] [v. Henrique III.]


[4] [v. Baldazzarini.]


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