O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume V — 2ª Parte ©

Textos paralelos de Atos dos apóstolos e Paulo e Estêvão

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O discurso de Estêvão

2 Ele disse: varões, irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória se tornou visível ao nosso Pai Abraão, enquanto estava na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã, 3 e disse para ele: sai da tua terra e da tua parentela, e vem para a terra que [eu] te mostrar. 4 Então, saindo da terra dos caldeus, habitou em Harã. E dali, depois da morte do seu pai, [Deus] fez com que ele imigrasse para esta terra, na qual vós agora habitais. 5 E não lhe deu herança nela, nem estrado de pé; mas prometeu dar-lhe a posse dela e, depois dele, à sua descendência, não tendo ele filho [ainda]. 6 E assim falou Deus: a descendência dele será peregrina em terra estrangeira, por quatrocentos anos a escravizarão e maltratarão. 7 Disse Deus: eu julgarei a nação que os escravizará, e depois destas [coisas] sairão e me prestarão culto neste lugar. 8 E deu-lhe a aliança da circuncisão; assim gerou a Isaac e o circuncidou ao oitavo dia; Isaac [gerou] a Jacob, e Jacob aos doze Patriarcas. 9 Os Patriarcas, invejando José, o entregaram ao Egito, mas Deus estava com ele, 10 retirou-o de todas as suas provações, deu-lhe graça e sabedoria perante o faraó, rei do Egito, que o constituiu condutor sobre o Egito e sobre a sua casa. 11 Veio, porém, fome e grande provação sobre o Egito inteiro e [sobre] Canaã, e nossos Pais não encontravam alimento. 12 Jacob, ouvindo que havia cereais no Egito, enviou para lá, pela primeira vez, os nossos Pais. 13 Na segunda vez, José se deu a conhecer a seus irmãos, e se tornou pública ao faraó a origem de José. 14 Ao enviá-los, José mandou chamar seu pai, e toda a sua parentela, [composta de] setenta e cinco almas. 15 Jacob desceu ao Egito, e [lá] morreu, ele e nossos Pais. 16 Foram transferidos para Siquém e colocados no sepulcro que Abraão havia comprado a preço de prata, junto aos filhos de Hemmor, em Siquém. 17 Como se aproximava o tempo da promessa que Deus havia declarado a Abraão, o povo cresceu e se multiplicou no Egito. 18 Até que se levantou outro Rei que não conhecera José. 19 Este [rei], ludibriando a nossa raça, maltratou os Pais, ao fazê-los abandonar os recém-nascidos, a fim de que não sobrevivessem. 20 Nesse tempo, foi gerado Moisés, que era formoso para Deus, o qual foi criado na casa do pai por três meses. 21 Ao ser abandonado, a filha do faraó o recolheu, e o criou como seu próprio filho. 22 Moisés foi educado em toda a sabedoria dos egípcios, é era poderoso em suas palavras e obras. 23 Quando se completou para ele o tempo de quarenta anos, subiu ao seu coração visitar os seus irmãos, os filhos de Israel. 24 E ao ver alguém sendo injustiçado, defendeu e fez justiça ao oprimido, ferindo o egípcio. 25 Supunha estarem compreendendo seus irmãos que Deus, através das mãos dele, concedia-lhes salvação. Eles, porém, não compreenderam. 26 No dia seguinte, foi visto pelos que estavam brigando e os reconciliava para a paz, dizendo: varões, [vós] sois irmãos, porque fazeis injustiça uns aos outros? 27 Mas o que fazia injustiça ao próximo o repeliu, dizendo: quem te constituiu autoridade e juiz sobre nós? 28 Acaso, tu queres me eliminar da maneira como eliminaste, ontem, o egípcio? 29 A estas palavras, Moisés fugiu e tornou-se estrangeiro na terra de Madiam, onde gerou dois filhos. 30 Completados quarenta anos, no deserto do Monte Sinai, foi visto por ele um anjo, na chama de fogo de uma sarça. 31 Ao ver [isso], Moisés ficou maravilhado com a visão e, aproximando-se para observar, surgiu uma voz do Senhor: 32 Eu sou o Deus de teus Pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. Moisés, ficando trêmulo, não ousava observar. 33 Disse-lhe o Senhor: tira a sandália dos teus pés, pois o lugar sobre o qual estás de pé é terra santa. 34 Vendo, [eu] vi a opressão do meu povo no Egito, ouvi o seu gemido, e desci para retirá-los. Agora vem, e te enviarei ao Egito. 35 Este Moisés, a quem negaram, dizendo: quem te constituiu autoridade? A este, Deus enviou [como] autoridade e redentor, com a mão do anjo que foi visto por ele na sarça. 36 Ele os retirou, realizando prodígios e sinais na terra do Egito, bem como no Mar Vermelho e no deserto, por quarenta anos. 37 Este é Moisés, o que disse aos filhos de Israel: Deus suscitará para vós, dentre os vossos irmãos, um Profeta como eu. 38 Este é o que esteve na congregação no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com nossos Pais, o qual recebeu palavras vivas para nos dar. 39 A quem nossos Pais não quiseram ser obedientes; ao contrário, o repeliram e, em seus corações, retornaram para o Egito, 40 dizendo a Aarão: faze para nós deuses, os quais seguirão adiante de nós, pois este Moisés, que nos retirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu. 41 Naqueles dias, fizeram um bezerro, conduziram oferenda ao ídolo e se deleitaram com as obras das mãos deles. 42 Deus, porém, retornou e os entregou ao culto do exército do Céu, como está escrito no Livro dos Profetas: acaso [foi] a mim que oferecestes sacrifícios e oferendas durante quarenta anos, ó Casa de Israel? 43 E levantaste a tenda de Moloch e a estrela do deus Renfan, as figuras que fizestes para as adorar. [Por isso] vos farei imigrar para o outro lado da Babilônia. 44 Havia para nossos Pais, no deserto, a tenda do testemunho, como ordenou fazê-la aquele que fala a Moisés, segundo o tipo que [Moisés] havia visto. 45 Ao recebê-la, nossos Pais, com Josué, também a levaram na desapropriação das nações que Deus expulsou da face dos nossos Pais - até aos dias de Davi. 46 Ele encontrou graça diante de Deus, e pediu para encontrar uma tenda para casa de Jacó. 47 Salomão, porém, lhe edificou uma casa, 48 mas o Altíssimo não habita no que foi feito por mãos [humanas], como diz o Profeta: 49 o céu é meu trono, e a terra estrado dos meus pés; que tipo de casa me edificareis, diz o Senhor, ou qual o lugar do meu repouso? 50 Porventura, a minha mão não fez todas essas [coisas]? 51 [Homens] de dura cerviz e incircuncisos nos corações e nos ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; como os vossos Pais, [sois] também vós. 52 Qual dos Profetas vossos Pais não perseguiram? Mataram os que haviam predito sobre a vinda do Justo, do qual vos tornastes agora traidores e assassinos, 53 vós que recebestes a Lei em preceitos de anjos, e não guardastes. 54 Ao ouvirem essas [coisas], estavam enfurecidos em seus corações, e rangiam os dentes contra ele. — (Atos 7:2-54)


16 […] Levantando-se, nobremente contemplou os rostos ansiosos que o buscavam de todos os lados. Adivinhou que a maioria dos presentes presumia na sua figura um perigoso inimigo das tradições raciais, tal a sua expressão de hostilidade; mas notou, igualmente, que alguns israelitas o encaravam com simpatia e compreensão. Valendo-se desse auxílio, sentiu consolidar-se-lhe o bom ânimo, de maneira a expor com maior serenidade os sagrados ensinos do Evangelho. Lembrou, instintivamente, a promessa de Jesus aos seus continuadores, de que estaria presente no instante em que devessem dar testemunho pela palavra, competindo-lhe não tremer ante as provocações inconscientes do mundo. Mais que nunca, sentiu a convicção de que o Mestre auxiliá-lo-ia na exposição da doutrina de amor.


17 Passado um minuto de ansiosa expectativa, começou a falar de modo impressionante:

— Israelitas! por maior que fosse nossa divergência de opinião religiosa, não poderíamos alterar nossos laços de fraternidade em Deus — o supremo dispensador de todas as graças. É a esse Pai, generoso e justo, que elevo minha rogativa em favor de nossa compreensão fiel das verdades santas. Outrora, nossos antepassados ouviram as exortações grandiosas e profundas dos emissários do Céu. Por organizar um futuro de paz sólida aos seus descendentes, nossos avós sofreram misérias e penúrias do cativeiro. Seu pão era molhado nas lágrimas de amargura, sua sede angustiava. Viram malogradas todas as esperanças de independência, perseguições sem conto destruíram-lhes o lar, com agravo de sofrimentos nas lutas de seu roteiro. 18 À frente de seus martírios dignificantes, andaram os santos varões de Israel, como gloriosa coroa do seu triunfo. Alimentou-os a palavra do Eterno, através de todas as vicissitudes. Suas experiências constituem poderoso e sagrado patrimônio. Delas, temos a Lei e os Escritos dos profetas. Apesar disso, não podemos iludir nossa sede. Nossa concepção de justiça é fruto de um labor milenário, em que empregamos as maiores energias, mas sentimos, por intuição, que existe algo de mais elevado, além dela. Temos o cárcere para os que se transviam, o vale dos imundos para os que adoecem sem a proteção da família, a lapidação na praça pública para a mulher que fraqueja, a escravidão para os endividados, os trinta e nove acoites para os mais infelizes. Bastará isso? As lições do passado não estão cheias da palavra “misericórdia”? Algo nos fala à consciência, de uma vida maior, que inspira sentimentos mais elevados e mais belos. Ingente foi o trabalho no curso longo e multissecular, mas o Deus justo respondeu aos angustiados apelos do coração, enviando-nos seu Filho bem-amado — O Cristo Jesus!…


19 A assembleia ouvia grandemente surpreendida. No entanto, quando o orador frisou mais forte a referência ao Messias de Nazaré, os fariseus presentes, fazendo causa comum com o jovem de Tarso, prorromperam em protestos, gritando alucinadamente:

— Anátema! Anátema!.. Punição ao trânsfuga!

Estêvão recebeu com serenidade a tormenta objurgatória e, tão logo foi a ordem restabelecida, prosseguiu com firmeza:

— Por que me apupais desta forma? Toda precipitação de julgamento demonstra fraqueza. Primeiramente, renunciei à discussão considerando que se deve eliminar todo fermento de discórdia; mas, dia a dia o Cristo nos convoca para um trabalho novo e, certamente, o Mestre me chama hoje, a fim de palestrar convosco relativamente às suas verdades poderosas. Desejais impor-me o ridículo e a zombaria? Isso, porém, deve confortar-me, porque Jesus experimentou esse tratamento em grau superlativo. Não obstante vossa repulsa, honro-me em proclamar as glórias inexcedíveis do profeta nazareno, cuja grandeza veio ao encontro de nossas ruínas morais, levantando-nos para Deus com o seu Evangelho de redenção.

Nova saraivada de apóstrofes cortou-lhe a palavra. Ditos mordentes e ásperos baldões eram-lhe atirados a esmo, de todos os lados. Estêvão não esmoreceu. Voltando-se, sereno, fixou nobremente os circunstantes, guardando a intuição de que os mais exaltados seriam os fariseus, os mais fundamente atingidos pelas verdades novas.


20 Esperando que recobrassem a calma, falou novamente:

— Fariseus amigos, por que teimais em não compreender? Porventura temeis a realidade das minhas afirmações? Se vossos protestos se fundam nesse receio, calai-vos para que eu continue. Lembrai-vos de que me refiro aos nossos erros do passado e quem se associa na culpa dá testemunho de amor, no capítulo das reparações. Apesar de nossas misérias, Deus nos ama e, reconhecendo eu a própria indigência, não poderia falar-vos senão como irmão. Entretanto, se expressais desespero e revolta, recordai que não poderemos fugir à realidade da nossa profunda insignificância. Lestes, acaso, as lições de Isaías? Importa considerar a exortação n de que não poderemos sair, apressadamente, nem enganando a nós mesmos, nem fugindo aos nossos deveres, porque o Senhor irá adiante e o Deus de Israel será a nossa retaguarda. Ouvi-me! Deus é o Pai, o Cristo é o Senhor nosso.

21 Muito falais da Lei de Moisés e dos Profetas; todavia, podereis afirmar com a mão na consciência a plena observância dos seus gloriosos ensinamentos? Não estaríeis cegos atualmente, negando-vos à compreensão da mensagem divina? Aquele, a quem chamais ironicamente o carpinteiro de Nazaré, foi amigo de todos os infelizes. Sua pregação não se limitou a expor princípios filosóficos. Antes, pela exemplificação, renovou nossos hábitos, reformou as ideias mais elevadas, com o zelo do amor divino. Suas mãos nobilitaram o trabalho, pensaram úlceras, curaram leprosos, deram vista aos cegos. Seu coração repartiu-se entre todos os homens, dentro do novo entendimento do amor que nos trouxe com o exemplo mais puro.

22 Acaso ignorais que a palavra de Deus tem ouvintes e praticantes? Convém consultardes se não tendes sido meros ouvintes da Lei, de maneira a não falsear o testemunho.

Jerusalém não me parece o santuário de tradições da fé, que conheci por informações de meus pais, desde criança. Atualmente, dá impressão de um grande bazar onde se vendem as coisas sagradas. O Templo está cheio de mercadores. As sinagogas regurgitam de assuntos atinentes a interesses mundanos. As células farisaicas assemelham-se a um vespeiro de interesses mesquinhos. O luxo das vossas túnicas assombra. Vossos desperdícios espantam. Não sabeis que à sombra de vossos muros há infelizes que morrem de fome? Venho dos subúrbios, onde se concentra grande parte de nossas misérias.

23 Falais de Moisés e dos Profetas, repito. Acreditais que os antepassados veneráveis mercadejassem com os bens de Deus? O grande legislador viveu entre experiências terríveis e dolorosas. Jeremias conheceu longas noites de angústias, a trabalhar pela intangibilidade do nosso patrimônio religioso, entre as perdições de Babilônia. Amós era pobre pastor, filho do trabalho e da humildade. Elias sofreu toda sorte de perseguições, compelido a recolher-se ao deserto, tendo só lágrimas como preço do seu iluminismo. Esdras foi modelo de sacrifício pela paz dos seus compatriotas. Ezequiel foi condenado à morte por haver proclamado a verdade. Daniel curtiu as infinitas amarguras do cativeiro. Mencionais os nossos heroicos instrutores do passado, tão só para justificar o gozo egoístico da vida? Onde guardais a fé? No conforto ocioso, ou no trabalho produtivo? Na bolsa do mundo, ou no coração que é o templo divino? Incentivais a revolta e quereis a paz? Explorais o próximo e falais de amor a Deus? Não vos lembrais de que o Eterno não pode aceitar o louvor dos lábios quando o coração da criatura permanece dele distante? ( † )

24 A assembleia, ante o sopro daquela sublime inspiração, parecia imóvel, incapaz de se definir. Muitos israelitas supunham ver em Estêvão o ressurgimento de um dos primevos profetas da raça. Mas os fariseus, como se quebrassem a misteriosa força que os emudecia, romperam em algazarra ensurdecedora, gesticulando a esmo, proferindo impropérios, no propósito de atenuar a forte impressão causada pelos surtos eloquentes e calorosos do orador.

— Apedrejemos o imundo! Matemos a calúnia! Anátema ao caminho de Satanás!…

Nesse comenos, Saulo levantou-se rubro de cólera. Não conseguia disfarçar a fúria do temperamento impulsivo, a desbordar-lhe dos olhos inquietos e brilhantes.

Caminhou presto para o acusado, dando a entender que ia cassar-lhe a palavra, e a assembleia logo se acalmou, embora continuasse o rumor dos comentários abafados.


25 Percebendo que ia talvez ser coagido pela violência e, mais, que os fariseus pediam sua morte, Estêvão fixou os mais irônicos e arrebatados, exclamando em voz alta e tranquila:

— Vossa atitude não me intimida. O Cristo foi solícito no recomendar não temêssemos os que só podem matar-nos o corpo.

Não pôde prosseguir. O moço tarsense, mãos à cintura, olhar iracundo e gestos rudes como se defrontasse um malfeitor comum, gritou-lhe furiosamente no ouvido:

— Basta! Basta! Nem mais uma palavra!… Agora que te foi concedido o último recurso inutilmente, também usarei o que me faculta a condição do nascimento, em face de um irmão desertor.

E caiu-lhe de punhos fechados no rosto, sem que Estêvão tentasse a menor reação. Os fariseus aplaudiram o gesto brutal, em atroada delirante, qual se estivessem num dia de festa. Dando expansão ao seu arrebatamento, Saulo esmurrava sem compaixão. Sem recursos de ordem moral, ante a lógica do Evangelho, recorria à força física, satisfazendo à índole voluntariosa.


26 O pregador do “Caminho”, submetido a tais extremos, implorava de Jesus a necessária assistência para não se trair no testemunho. Não obstante a reforma radical que a influência do Cristo havia imposto às suas concepções mais íntimas, ele não podia fugir à dor da dignidade ferida. Procurou, contudo, recompor imediatamente as energias interiores, na compreensão da renúncia que o Mestre predicara como lição suprema. Lembrou os sacrifícios do pai em Corinto, reviu na imaginação o seu suplício e morte. Recordou a prova angustiosa que sofrera e considerou que, se tão só no conhecimento de Moisés e dos Profetas tanto conseguira em energia moral para enfrentar os ignorantes da bondade divina, que não poderia testemunhar agora com o Cristo no coração? Esses pensamentos acudiam-lhe ao cérebro atormentado, como bálsamo de suprema consolação. Entretanto, embora a fortaleza de ânimo que lhe marcava o caráter, viu-se que ele vertia copiosas lágrimas. Quando lhe observou o pranto misturado com o sangue a jorrar da ferida que as punhadas lhe abriram em pleno rosto. Saulo de Tarso conteve-se saciado na sua imensa cólera. Não podia compreender a passividade com que o agredido recebera os bofetões da sua força enrijada nos exercícios do esporte.


27 A serenidade de Estêvão perturbou-o ainda mais. Sem dúvida, estava diante de uma energia ignorada.

Esboçando um sorriso de zombaria, advertiu altaneiro:

— Não reages, covarde? Tua escola é também a da indignidade?

O pregador cristão, apesar dos olhos molhados, respondeu com firmeza:

— A paz difere da violência, tanto quanto a força do Cristo diverge da vossa.

Verificando tamanha superioridade de concepção e pensamento, o doutor da Lei não podia ocultar o despeito e a fúria que lhe transpareciam nos olhos chamejantes. Parecia no auge da irritação, a extravasar nos maiores despropósitos. Dir-se-ia haver chegado ao cúmulo de tolerância e resistência.


28 Voltando-se para observar a aprovação dos seus partidários, que se contavam por maioria, dirigiu-se ao sumo-sacerdote e impetrou uma sentença cruel. Tremia-lhe a voz, pelo esforço físico despendido.

— Analisando a peça condenatória — acrescentou ufano — e, considerados os graves insultos aqui bolçados, como juiz da causa rogo seja o réu lapidado.

Frenéticos aplausos secundaram-lhe a palavra inflexível. Os fariseus tão duramente atingidos pelo verbo ardente do discípulo do Evangelho supunham vingar, desse modo, o que consideravam escárnio criminoso às suas prerrogativas.

A autoridade superior recebeu o alvitre e procurou submetê-lo à votação no reduzido círculo dos colegas mais eminentes.

Foi então que Gamaliel, depois de palestrar em voz baixa com os colegas de elevada investidura, comentando talvez o caráter generoso e a incoercível impulsividade do ex-discípulo, dando-lhes a entender que a sanção proposta seria a morte imediata do pregador do “Caminho”, levantou-se no inquieto cenáculo e ponderou nobremente:

— Tendo voto neste Tribunal e não desejando precipitar a solução de um problema de consciência, proponho que se estude mais ponderadamente a sentença pedida, retendo-se o acusado em calabouço até que se esclareça a sua responsabilidade perante a justiça.


29 Saulo percebeu o ponto de vista do antigo mestre, inferindo que ele punha em jogo o seu reconhecido pendor à tolerância. Aquela advertência contrariava-lhe sobremaneira os propósitos resolutos, mas, sabendo que não lhe poderia ultrapassar a autoridade veneranda, acentuou:

— Aceito a proposição na qualidade de juiz do feito; entretanto, adiada a execução da pena, qual fora de desejar e tendo em vista o veneno destilado pelo verbo irreverente e ingrato do réu, espero seja este algemado e recolhido imediatamente ao cárcere. E proponho igualmente investigações mais amplas sobre as atividades supostamente piedosas dos perigosos crentes do “Caminho”, a fim de que se extirpe na raiz a noção de indisciplina por eles criada contra a Lei de Moisés, movimento revolucionário de consequências imprevisíveis, que significa, em substância, desordem e confusão em nossas próprias fileiras e ominoso esquecimento das ordenações divinas, conjurando assim a propagação do mal, cujo crescimento intensificará os castigos.

A nova proposta foi plenamente aprovada. Com a sua profunda experiência dos homens, Gamaliel compreendeu que era indispensável conceder alguma coisa.


30 Ali mesmo, Saulo de Tarso foi autorizado pelo Sinédrio a iniciar as mais latas diligências em torno das atividades do “Caminho”, com ordem de admoestar, corrigir e prender todos os descendentes de Israel dominados pelos sentimentos colhidos no Evangelho, considerado, desde aquela hora, pelo regionalismo semita, como repositório de veneno ideológico, com que o ousado carpinteiro nazareno pretendia revolucionar a vida israelita, operando a dissolução dos seus elos mais legítimos.

O moço tarsense, em frente de Estêvão prisioneiro, recebeu a notificação oficial com um sorriso triunfante.

Encerrou-se, assim, a memorável sessão. Numerosos companheiros acercaram-se do moço judeu, felicitando-o pela palavra vibrante, ciosa da hegemonia de Moisés. O ex-discípulo de Gamaliel recebia a saudação dos amigos e murmurava confortado:

— Conto com todos, lutaremos até ao fim.

Os trabalhos daquela tarde tinham sido exaustivos, mas o interesse despertado fora enorme. Estêvão sentia-se cansadíssimo. Ante os grupos que se retiravam esflorando os mais diversos comentários, foi ele maniatado antes de conduzido à prisão. Polarizando os sentimentos do Mestre, não obstante a fadiga, tinha confortada a consciência. Com sincera alegria interior, verificava que mais uma vez Deus lhe concedia a oportunidade de testemunhar a sua fé.

Em poucos instantes, a sombra do crepúsculo parecia caminhar rápida para a noite sombria.

Após suportar as mais dolorosas humilhações de alguns fariseus que se retiravam sob profunda impressão de despeito, custodiado por guardas rudes e insensíveis, ei-lo recolhido ao cárcere, com pesadas algemas.


Emmanuel



[2] Isaías, 52:12 (Nota de Emmanuel)


(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Primeira parte. Capítulo 6, pp. 100 a 107. Indicadores 16 a 30)


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