O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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O Evangelho por Emmanuel — Volume II

Comentários ao Evangelho segundo Marcos

Introdução ao Evangelho segundo Marcos

O evangelho segundo Marcos é o segundo texto que compõe o conjunto de 27 escritos que formam o Novo Testamento. A sua antiguidade e características distintivas fazem deste um dos mais interessantes escritos da Boa-Nova, cuja compreensão passa, necessariamente, por um entendimento das circunstâncias que cercaram o seu surgimento, seu autor e destinatários.

Quase todos os estudiosos da atualidade consideram que a compilação deste Evangelho é a mais antiga. Aqui, contudo, vale lembrar que compilação e redação são processos distintos. Mesmo sendo considerado o mais antigo, ele é certamente herdeiro de fontes orais e ou escritas, que foram integradas no texto que chegou aos nossos dias.

Em termos de extensão, ele é o menor dos evangelhos, contendo 678 versículos e a quase totalidade de passagens deste Evangelho está também contida nos dois outros sinóticos (Mateus e Lucas). Isso é utilizado para justificar a tese de que ele seria o Evangelho mais antigo, e que os redatores de Mateus e Lucas teriam utilizado esse texto para compor suas próprias narrativas. Apesar disso, a forma, o propósito e a história atribuem a esse texto um caráter singular.


O autor

O autor não pode ser identificado pelo próprio texto, ao contrário de outros escritos do Novo Testamento. Em momento algum encontramos um autor que se autoidentifica, e já no primeiro versículo a afirmação de que este é o “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo” denota a intenção de quem o redigiu em manter-se oculto. O Evangelho é de Jesus e é a sua ação e ensino que devem ser lembrados. A autoria atribuída a Marcos é estabelecida pelos títulos de manuscritos antigos, onde se encontra KATA MAPKON (kata Marcon - literalmente segundo ou de acordo com Marcos) e EYAITEΛION KATA MAPKON [Κατὰ Μᾶρκον Εὐαγγέλιον] (euangélion kata Marcon - evangelho segundo ou de acordo com Marcos). Sabemos, contudo, que esses títulos foram atribuídos pelos copistas, baseando-se mais em tradições do que em evidências internas do próprio texto.

As mais antigas tradições das primeiras comunidades cristãs apontam Marcos como sendo um companheiro de Pedro. Papias  †  n identifica Marcos como intérprete ou tradutor de Pedro e Clemente de Alexandria n acrescenta que, estando em Roma, Marcos teria escrito o que tinha ouvido e aprendido de Pedro, a pedido daqueles que ouviram as preleções do pescador de Cafarnaum na capital do império. Esse estreito relacionamento pressuposto, entre o ensino de Pedro e o conteúdo do segundo Evangelho, como às vezes é chamado o Evangelho segundo Marcos, fez com que alguns no passado, como Tertuliano, tratassem esse texto também como o Evangelho de Pedron

Considerando-se as tradições como verdadeiras, resta a questão de saber quem teria sido Marcos. O nome Marcos ou João Marcos aparece em várias partes do Novo Testamento, como: Atos dos apóstolos 12.12; 13.13 e 15.36 a 40; Colossenses 4.10, onde é identificado como sobrinho ou primo de Barnabé; Filemon 24, onde somos informados de que ele está junto de Paulo na prisão em Roma; 2 Timóteo 4.11 registra que Paulo pede para que Marcos seja trazido a Roma para cooperar com ele no trabalho de divulgação da Boa-Nova; e Pedro o chama de “meu filho” n em 1 Pedro 5.13.

Marcos não fez parte dos doze apóstolos e, portanto, teria que necessariamente colher as informações em fontes que não a sua própria convivência com Jesus. Alguns, como F. Barth, sugerem que Marcos possa ser o jovem que “fugiu nu” (Marcos 14.51 e seguintes), quando da prisão de Jesus. Os argumentos nesse sentido, contudo, são hipotéticos e derivam mais da tentativa de explicar um relato tão peculiar como esse do que por evidências que sustentam essa hipótese.


Destinatários

O Evangelho segundo Marcos não foi composto para um público familiarizado com a cultura judaica, sendo quase certo que seus destinatários eram principalmente gentios recém-convertidos ao Cristianismo. Em apoio a essa tese evidencia-se a necessidade de se explicar alguns costumes judaicos, como o hábito de lavar­se antes das refeições, em Marcos 7.1 a 13. Se fosse escrito para leitores que conhecessem esses costumes, essa menção teria sido suprimida, como ocorre na passagem paralela em Mateus 15.2n


Data e local de composição

As dificuldades de datação do Evangelho segundo Marcos repousam, primeiramente, na quase total ausência de informações no próprio texto, que possibilitem uma conexão com eventos históricos conhecidos. Por essa razão, as principais fontes utilizadas são testemunhos externos, como os de Irineu e Clemente, citado por Eusébio. Segundo Irineu, n a transmissão do Evangelho segundo Marcos se deu quando Pedro deixou Roma. O problema aqui reside no termo “deixou”, que é a tradução de έξοδος (êxodos), o qual pode tanto significar que Pedro deixou Roma para ir à outra localidade, ou que ele havia já desencarnado. Pelo que nos trás Eusébio, n citando Clemente, Pedro ainda estava em Roma quando esse Evangelho foi redigido.

Acredita-se que Pedro tenha sido martirizado na capital do império sob o reinado de Nero, n que terminou em 68 d.C. Dessa forma, considerando-se que o Evangelho segundo Marcos tenha sido escrito enquanto o apóstolo ainda estava vivo, a data deve ser localizada antes de 68 d.C.

A favor de uma datação mais tardia, é geralmente citado o argumento de que os eventos narrados em Mc 13.14 a 23 pressupõem um conhecimento da queda do Templo de Jerusalém, ocorrida em 70 d.C. Isso, contudo, além de negar uma capacidade profética de Jesus, considera uma referência que é, no mínimo, nebulosa à destruição do segundo templo.

Enquanto há poucas dúvidas quanto ao local de redação ter sido Roma, a data aceita entre a maioria dos estudiosos varia entre os anos de 64 a 68 d.C.


Características distintivas

O elemento que já, desde o início, chama a atenção neste Evangelho é que ele nada diz sobre a infância de Jesus. O texto inicia a partir do batismo de João e prossegue em um ritmo quase frenético, relatando viagens, curas, milagres até o episódio da crucificação. Curiosamente, é também muito sucinto no que diz respeito ao relato da ressurreição e das ações do Jesus ressuscitado. A totalidade das ações de Jesus, após a ressurreição, estão no chamado “final longo” deste Evangelho (Mc 16.9ss). Há quem acredite que estes versículos finais teriam sido anexados ao texto posteriormente, para suprir a ausência de narrativas pós-ressurreição, visto que um Evangelho, que nada dissesse sobre o que Jesus teria feito depois de ressuscitado, seria um tanto quanto inesperado. Alguns manuscritos importantes, n apesar de não serem os mais antigos, de fato trazem um texto que termina em Mc 16.8.

Algumas passagens são exclusivas deste Evangelho, como: o temor dos familiares de que Jesus esteja fora de si (Mc 3.20 a 21); a parábola da semente que cresce por si mesma (Mc 4.26 a 29); a cura de um surdo mudo na Decápolis (Mc 7.31 a 37); a cura gradual do cego em Betsaida (Mc 8.22 a 26); a exortação à vigilância dos servos (Mc 13.33 a 37); o já mencionado relato do jovem que fugiu nu (Mc 14.51 a 52); e os controversos sinais da fé (Mc 16.17 a 18).

O grego de Marcos é as vezes rude e primário, destituído da beleza poética encontrada em Lucas e longe dos longos discursos presentes em João. Isso faz com que o Jesus, que emerge da leitura desse Evangelho, esteja revestido desses elementos.


Perspectiva espírita

Emmanuel informa, no livro Paulo e Estêvão, que o autor do segundo Evangelho foi de fato João Marcos. Acrescenta ainda que ele era residente em Jerusalém, filho de Maria Marcos, uma mulher que detinha recursos financeiros significativos e que era irmã de Barnabé, o companheiro de Paulo de Tarso. Marcos era jovem e não deve ter conhecido Jesus em condições de fazer parte do grupo de seus seguidores, se é que o conheceu pessoalmente. Apresenta, ainda, um conjunto de eventos que resumiremos a seguir.

Estando Barnabé e Paulo de retorno à Jerusalém, ali encontram uma situação inesperada, onde o avanço do judaísmo sobre a Casa do Caminho produzira mudanças significativas. O clima original de fraternidade e fidelidade ao Evangelho já não era a tônica vigente, ao ponto de Tiago, que estava substituindo Pedro na liderança, enquanto este estava em viagem para Jope, não acolher os dois missionários. Por isso, eles são forçados a buscar abrigo na casa de Maria Marcos irmã de Barnabé. É lá que a irmã do ex-levita de Chipre, como Emmanuel às vezes se refere a Barnabé, expressa o seu desejo de que seu filho, João Marcos, siga os labores do Evangelho, acompanhando Paulo e Barnabé na viagem para Antioquia. Há, nesse momento, um interessante diálogo, em que Paulo, observando que o entusiasmo da mãe excedia o interesse legítimo do jovem, expõem os sacrifícios necessários aos discípulos do Mestre, procurando dissolver as ilusões de facilidades que jamais cruzariam seus caminhos. Diante desses alertas, o jovem se mostra convicto em suas disposições de prosseguir na empreitada.

No caminho entre Jerusalém e Antioquia, Paulo, refletindo sobre a perigosa situação em que se encontrava a comuni­dade de Jerusalém, elabora e expõe, a Barnabé, o seu projeto de divulgar, de maneira mais decisiva, a Boa-Nova aos gentios. O ex-levita acolhe a ideia com entusiasmo. Os dois comunicam, então, o projeto a João Marcos, que o acata, não sem algum receio quanto aos encargos que a tarefa poderia exigir. Chegando os três a Antioquia, Paulo expõe novamente o projeto de seguir em busca dos gentios aos anciãos daquela comunidade, e dali partem em viagem para a ilha de Chipre. Lá chegando, iniciam em NeaPafos o projeto de divulgação da Boa-Nova aos gentios, e um evento providencial leva Barnabé e Paulo à presença do procônsul Sérgio Paulo, a fim de socorrê-lo face uma doença que o acometia. Agradecido pela cooperação dos dois missionários, Sérgio Paulo oferece os recursos para a edificação do edifício que abrigaria a comunidade dos seguidores de Jesus na cidade. Essa seria a terceira edificação (sendo Jerusalém e Antioquia as duas primeiras) destinada a esse fim e a primeira a ser erguida como fruto do trabalho de Paulo. É em reconhecimento a esse evento e em gratidão ao pro cônsul romano que o então Saulo adota a grafia romana do seu nome, passando a se chamar Paulo. João Marcos acompanha esse primeiro movimento na ilha de Chipre, não sem sentir um assombro pelo extremado interesse em relação aos gentios e um afastamento dos preceitos mais rígidos relacionados à antiga Lei.

Dali, partem para Panfília, sob queixas do jovem filho de Maria Marcos, ante as exigências do labor. O auge do seu descontentamento começa quando se vê forçado a se dedicar às atividades de preparação dos alimentos e, quando recebe a notícia de que de Perge partiriam para Antioquia da Psídia, ele desiste da tarefa e volta à Jerusalém. João Marcos fracassara em sua primeira tentativa de seguir o Evangelho. Em sua despedida, ouviu de Paulo uma advertência quanto à necessidade de o discípulo do Evangelho manter-se em constante atividade, visto que muitos fracassaram quando cederam espaço ao descanso indevido e à invigilância.

Mais tarde, esse exemplo de fraqueza do jovem foi o motivo pelo qual Paulo rejeitou a proposta de Barnabé de novamente trazê-lo para junto deles em nova missão. Isso acabou por resultar na separação de Paulo e Barnabé, tendo este seguido novamente para Chipre, em companhia de João Marcos, enquanto o apóstolo da gentilidade prosseguiu em outra direção. n

Ao final da vida de Paulo, contudo, as dificuldade e labores já haviam produzido o necessário amadurecimento do jovem Marcos e ele já gozava de reconhecimento e respeito perante o convertido de Damasco. Em sua segunda carta a Timóteo, Paulo pede que Marcos seja enviado à Roma para auxiliá-lo nos trabalhos da Boa-Nova. O tempo e o esforço haviam moldado o caráter desse jovem, que jamais esqueceria a importância da atividade constante no serviço do bem.

Esse alongado resumo das informações constantes, principalmente do capítulo 4 da segunda parte do livro Paulo e Estêvão, nos auxilia a compreender as experiências que marcaram esse evangelista, cujos ecos se verificam no texto de um Evangelho que enfoca sobremaneira o exemplo das ações constantes de Jesus.


Um evangelho de ação

Mais do que em qualquer outro texto, o Jesus que Marcos revela é alguém que age no mundo, que o transforma através de ações sobre indivíduos, grupos e coletividades, sabendo, de antemão que essas ações o conduzirão para o sacrifício supremo. Ele está presente no socorro às dores e problemas, curando e solucionando-os. Essas curas e milagres, contudo, não devem ser vistas somente como materiais, pois ao mesmo tempo em que ele trata o corpo, seu objetivo é a alma. O Jesus que salva é o que cura e, portanto, espera um despertar para as realidades espirituais que cercam a criatura humana.

Como vimos, para um público que não conheceu Jesus, era importante demonstrar que ele agiu e continuará agindo, cabendo a cada um de nós prosseguir no seu exemplo, trabalhando e servindo, amparando e socorrendo, lembrando que na tarefa de edificação de si mesmo, o discípulo será convidado a reconhecer que não há transformação sem esforço, nem edificação no bem sem perseverança. Talvez, essa seja uma das mais expressivas mensagens desse Evangelho, redigido por alguém que, como poucos, sofreu as angústias de ter fraquejado quando era necessário prosseguir servindo, mas que soube levantar-se de suas próprias limitações e encontrar o Mestre no campo do trabalho.


Saulo Cesar Ribeiro da Silva



[1] Citado por Eusébio em História Eclesiástica Livro III.  † 


[2] Citado por Eusébio em História Eclesiástica Livro VI.


[3] É importante ressaltar que não existe nenhuma correlação entre o Evangelho segundo Marcos e o apócrifo Evangelho de Pedro que possui origem notadamente gnóstica.


[4] Obviamente, aqui uma tratativa carinhosa sem que se evidencie consanguinidade já que a palavra “uióç” (uios) pode ser traduzida por seguidor, descendente ou filho em sentido figurado.


[5] Veja a “Introdução ao Evangelho segundo Mateus; no primeiro volume dessa série, O Evangelho por Emmanuel: comentários ao Evangelho segundo Mateus.


[6] Contra as Heresias, 3.1; 38-41.  † 


[7] História eclesiástica, 6.14.6-7.


[8] Humberto de Campos, na crônica O Natal do apóstolo, publicado em Antologia mediúnica do Natal, 6. ed. FEB, atesta essa tradição.


[9] Códex Sinaíticus (א)  †  e Vaticanus (B)  † 


[10] Vide Atos dos apóstolos , 13.36 a 39


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