O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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E a vida continua… — André Luiz


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Nova diretriz

(Sumário)

1. Após internarem Desidério e Elisa em organização hospitalar, sob assistência afetuosa, Ernesto e Evelina retornaram, na tarde do mesmo dia, a São Paulo, desejosos que se achavam de consultar a posição íntima de Vera, ante a nova situação. Esclarecidos quanto ao futuro, em que a presença e a colaboração dela lhes seriam sobremaneira importantes à própria tranquilidade, identificavam-se no dever de ampará-la com mais calor de ternura.

2 A rendição de Desidério aos ideais renovadores que alentavam era igualmente um ponto fundamental no programa de trabalho a cumprir-se e esperavam reajustar as atitudes de Caio para que se lhes assegurasse mais ampla área de ação.

3 Encontraram Vera Celina marcada de lágrimas, apoiando-se em parentes e amigos.

Caio, taciturno, orientava o leme doméstico, dava ordens.

4 Estabelecido o cortejo fúnebre, os dois visitantes desencarnados, além de outros muitos amigos da Espiritualidade Maior, se instalaram no carro familiar, junto de Vera; entretanto, na chegada ao campo-santo, Ernesto escorou a filha, ao mesmo tempo que Evelina seguiu o ex-esposo, que se figurava distrair-se em quadra próxima àquela em que os restos da viúva Fantini descansariam.

5 Serpa fugia, intencionalmente. Não queria ver a inumação.

Colhido em cheio pela influência da companheira que ele, antes, pouco mais de dois anos, levara ao sepulcro, pensava nela e, sem querer, lhe via mentalmente o semblante na tela da memória.

6 Não longe dele, Vera chorava nos braços dos amigos, enquanto ele mesmo, sorumbático, refletia, refletia…

Lembrava-se de quando deixara a mulher morta em outro cemitério, o da Quarta Parada, n rememorava-lhe a partida, revisava na imaginação os incidentes havidos…

Era crepúsculo, qual ocorria ali, em Vila Mariana. E as mesmas inquirições lhe vinham à cabeça…

7 Terminaria a vida em montões de pedra e cinza? Para onde se transfeririam os mortos, na hipótese de continuação da existência? Onde estariam os pais que ele vira partir, nos dias da juventude? Em que região andaria Evelina, a esposa que amara, desmedidamente, na primeira mocidade, e de quem a enfermidade e a morte o haviam separado? 8 Recordando-a, sentiu-se ligado a outra penosa reminiscência: Túlio Mancini… O coração se lhe arrochava e passou a indagar de si mesmo por que motivo se confiara à loucura de assassinar estupidamente o colega… O delito aflorou-lhe à memória com todas as minudências…


2. Propôs-se alijar as reflexões que lhe assomavam ao cérebro; no entanto, sentia-se incompreensivelmente fisgado ao pretérito.

2 Não podia perceber que Evelina, em Espírito, ali estava, rente a ele, diligenciando acordá-lo para a verdade.

— Caio, que fazes da vida? — Ela perguntou, docemente.

3 O advogado não registou a indagação com os tímpanos corpóreos, mas ouviu-a na acústica da alma e julgou monologar: “Caio, que fazes da vida?!” Repetiu, inconscientemente, as palavras da companheira desencarnada, no ádito da própria consciência, e passou a considerar que o tempo fugia sem que se desse conta de si mesmo… 4 Em que valores permutara o patrimônio das horas? Em que recursos convertia a saúde e o dinheiro? Que bênçãos já teria espalhado com o título acadêmico que ostentava? Na condição de amigo, exterminara um companheiro, na posição de esposo, não tivera coragem de ser bom para a mulher, quando sitiada pela doença!…

5 O olhar se lhe esbarrou, sem querer, no ritual do sepultamento de Elisa e inquiriu, de si mesmo, o que teria representado para a morta… Sinceramente, não se sentia bem consigo próprio, realinhando na imaginação a impaciência e a dureza com que sempre a tratara, preocupado em arrebatar-lhe a ternura da filha…

6 Avaliando as péssimas notas que a consciência lhe conferia no educandário da existência, embora de longe, fixou Vera, a esquadrinhar-lhe o íntimo, através do semblante.

— Caio, — assoprou-lhe Evelina aos ouvidos da alma, — pense nos teus compromissos… É tempo de legalizar a situação da jovem que se entregou a você sem qualquer restrição…

7 Convencido de que conversava de si para consigo, Serpa reproduziu a interpelação, no campo mental, em silêncio, sem perceber que a esposa desencarnada lhe colhia as respostas. Supondo desenvolver tão somente um processo de autocrítica, monologou sem palavras: “Legalizar a situação com Vera? Casar-me? Porquê?”

8 Sim, aprovava, prometera-lhe matrimônio, mas não se resignava a aceitar a medida sem maior observação. Já fora homem preso a obrigações de marido e não se propunha a retomar afeição recheada a constrangimentos. Além disso, matutava, dava-se por homem robustecido na experiência do mundo. Escutara em sociedade muitas referências desprimorosas, ao redor da filha de Elisa, que não a recomendavam para esposa. De rapazes diversos, obtivera apontamentos que lhe enodoavam a ficha de mulher. Porque entregar seu nome a uma criatura tida por inconstante?

9 — Caio, quem é você para julgar?

A interrogação de Evelina percutiu na alma dele em forma de ideia fulgurante que o enterneceu e assustou…

E qual se pensasse em voz alta, a falar espiritualmente para si próprio, recebia novas exortações, semelhando impactos da verdade a lhe atingirem o ádito do próprio ser:

10 — Caio, quem é você para julgar? Não és igualmente de ti mesmo, alguém onerado com débitos escabrosos perante a Lei? A que título, condenar sumariamente uma jovem, prejudicada pelos enganos da sua condição de menina moralmente desamparada?!…

11 Na base das advertências que lhe eram endereçadas, prosseguia indagando-se… Seria justo abusar dela agora que se via praticamente só no mundo? Se a desprezasse, para onde iria? E quem era ele, Caio Serpa, senão um homem no rumo da madureza, reclamando a dedicação de alguém para que o comboio da vida se não lhe descarrilasse? 12 Conhecia ele toda a escala dos prazeres físicos e que lucrara finalmente com isso, se levava toda manifestação afetiva para o terreno da irresponsabilidade e do abuso? Que recolhera senão cansaço e desilusão das noitadas barulhentas, cheias de vozes e vazias de sentido? 13 Até ali, que lembrasse, nunca ajudara a ninguém. Sabia ser afável até o ponto em que as circunstâncias não o descontentassem. Bastava, porém, um ponto, um leve ponto a contrariá-lo, em quaisquer acontecimentos, para que se internasse nessa ou naquela escapatória, no claro intuito de não se incomodar. 14 Não teria chegado o momento de auxiliar a outrem, agir a favor de alguém? De começo, empenhado à conquista, cumulara Vera de gentilezas, carinhos. Enredara-lhe as atenções. Depois, o fastio daqueles que não mais sabem amar, quando a chama do desejo se lhes extingue na candeia da forma. 15 Entretanto, não lhe era lícito negar que a moça lhe dera os mais altos testemunhos de confiança. Vera Celina se lhe entregara, de todo. E, por fim, não vacilara humilhar a própria genitora, a fim de colocar-lhe nas mãos todos os bens…

16 Serpa registava todos os argumentos da companheira desencarnada, à feição de uma lâmpada que se julgasse fonte da luz de que se beneficia, a ignorar que a recolhe da usina.

17 E opunha contraditas:

— Consorciar-me? Prender-me? Porquê? Não tenho toda a satisfação do homem casado, sem as peias do matrimônio?

18 E a voz de Evelina a ressoar-lhe novamente no espírito:

— Sim, és o elemento-comando da união; entretanto, como não te garantires contra as tentações do futuro? Como não te imunizares contra as tuas próprias inclinações para a aventura, doando a ela — o elemento-obediência — a tranquilidade de que carece para servir-te? 19 Acaso te julgas livre das tendências à leviandade que te assinalam o campo afetivo? Não será recomendável lhe assegures a paz, preservando a paz de ti mesmo, pela submissão às disciplinas justas da vida? 20 Pensa! Imagina-te à frente de tua própria mãezinha, já que quase todo homem procura na esposa, acima de tudo, o apoio maternal que a madureza furtou da infância…. Estimarias que um homem, na hipótese o teu próprio pai, lhe espancasse os mais puros anseios do coração? 21 Porventura não se tornaria ela mais digna do teu amparo e do teu carinho, se a visses brutalizada, desamparada, esquecida por aquele mesmo a quem se rendeu, confiante? Porque alegares sofrimentos passados para menoscabar a criatura que amas, se semelhantes provações fazem dela alguém com mais acentuada necessidade de tua proteção e entendimento?!…

22 Das admoestações propriamente consideradas, a ex-senhora Serpa se transferiu para reflexões de otimismo e esperança:

— Caio, medita!… Vera não te confiou parcos recursos materiais à administração! Dispões de patrimônio apreciável para organizar uma família… 23 Pondera quanto às bênçãos do futuro! Escuta! Creias ou não em Deus e na sobrevivência do Espírito, além da morte, carregas contigo um doloroso problema, até agora inarredável da mente: o remorso pelo homicídio praticado, a lembrança de Túlio Mancini, abatido por tuas mãos! Escapas, no rumo de prazeres que não te diminuem a mágoa, e tentas, em vão, bloquear reminiscências amargas que te assediam constantemente… 24 Ser pai, cuidar de filhos queridos, não te será na Terra a mais elevada compensação? O matrimônio com Vera te investirá legalmente na posse de recursos a serem valorizados e aumentados, garantindo, aos filhinhos vindouros, segurança e conforto, alegria e educação!… Um lar, Caio!… Um lar, onde possas descansar, renovar-te, esquecer!… Filhos em que te revejas e o convívio de Vera, cuja presença te lembrará o refúgio maternal!…

25 Diante daquelas santas evocações de paz e ventura que jamais experimentara, pela primeira vez, depois de muitos anos, Serpa chorou…

26 Evelina continuava:

— Sim, Caio, lava o coração na corrente das lágrimas!… Chora de esperança, de júbilo! Confiemos em Deus e na vida!… O Sol que hoje se põe, voltará amanhã! Contempla estas lousas, fita os sepulcros à frente! De todos os lados, explodem verdura e flor, a dizerem que a morte é ilusão, que a vida triunfa, bela e eterna!… De um outro mundo, os que te amam regozijar-se-ão com os teus gestos de entendimento! Túlio te perdoará, Elisa há de abençoar-te!… Coragem, coragem!…

27 O causídico, surpreso, incapaz de identificar-se visitado pelo Espírito da companheira de outros tempos, reconhecia-se subitamente consolado e eufórico, tangido por suave renovação, nos recônditos do ser.


3. À maneira de um doente que encontrara o remédio providencial e a ele se agarrasse, na sede da própria cura, instintivamente decidiu-se a não perder o precioso momento de exaltação construtiva em que entrara.

2 — Vamos!… — Insistiu Evelina, — concede agora, mas claramente agora, a nossa Vera a certeza de que a protegerás num casamento digno!…

3 Sucedeu o inesperado.

Habitualmente agressivo e rebelde, Caio Serpa arrancou-se, humilde, do lugar em que se plantara, avançou sempre abraçado pelo Espírito da ex-esposa, na direção do grupo em que a jovem se apoiava… 4 Ali, de pensamento conjugado ao da mensageira espiritual, observou a moça sob novo prisma. Pareceu-lhe que começava a amá-la de maneira diversa. Viu-a mais cativante na dor que demonstrava, percebeu-lhe a solidão e a sede justa de companhia. 5 Às súbitas, reconheceu-se também só, a requisitar-lhe mais intensivamente a dedicação e o carinho para viver.

Já não sabia, naquele inolvidável instante, se a queria com a impertinência de um homem ou com a ternura de um pai…

6 Abordando-a, tomou-lhe o braço, de leve, e comunicou-lhe, em voz alta, no propósito de alicerçar a própria declaração com o testemunho dos amigos presentes:

— Vera, não chore mais… Você não está sozinha! Amanhã mesmo, cogitaremos de organizar a documentação precisa para casar-nos tão breve quanto possível!…

7 A interpelada lançou-lhe um olhar significativo e agradecido… E enquanto ambos se escoravam um no outro para o retorno a casa, Evelina e Ernesto, com os amigos desencarnados atentos às derradeiras homenagens à viúva Fantini, entraram em prece, agradecendo ao Senhor a bênção daquela transformação.

8 Mais um passo importante estava articulado para o futuro melhor…

Caio e Vera levantariam um lar com o Amparo Divino. 9 Túlio Mancini ressurgiria para a Terra, no tronco daquele mesmo que lhe subtraíra a existência, satisfazendo à Lei do Amor que determina sejam o ódio e a vingança para sempre banidos da Obra de Deus!… 10 Mais tarde, Elisa se lhes reuniria por filha bem-amada!… Caio se reconfortaria e certamente seria outro homem, ao ver-se continuado na posteridade feliz, sob o olhar carinhoso de Vera, que o amava ardentemente…

11 Evelina cismava em tudo isso, incapaz de sofrear o pranto de júbilo… Continuava amando o ex-esposo, porém, noutro nível, e, com toda a alma, agradecia ao Senhor a existência de Vera Celina, a quem passara a reverenciar e querer bem, na condição de protetora, cujos serviços se manteriam para ela irresgatáveis.

12 Em transporte de alegria, correu ao encontro dos noivos e, antes que Serpa se aboletasse no automóvel, junto da companheira, abraçou-o, reconhecida, e, pela primeira vez, bradou-lhe ao coração com a celeste emotividade do amor purificado a labaredas de sofrimento:

— Caio, meu filho! Meu filho!… Sê feliz e que Deus te abençoe!…

13 Em seguida, inclinou-se para Vera e beijou-lhe a mão com enternecimento indescritível.

O auto rodou, de volta.

14 Evelina e Ernesto, por longo tempo, ainda se demoraram em oração, no tranquilo santuário da morte, transfigurado ali para os dois em pouso de reconhecimento e alegria, ante as primeiras estrelas que começavam a luzir na selva da noite, quais lanternas de fogo e prata, clareando o caminho para Deus, a pleno céu azul.


André Luiz



[1] Cemitério da capital paulista. — Nota do Autor espiritual.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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