O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice | Página inicial | Continuar

Cartas e crônicas — Irmão X


35


Carta de um morto

1 Pede-me você notícias do cemitério nas comemorações de Finados. E como tenho em mãos a carta de um amigo, hoje na Espiritualidade, endereçada a outro amigo que ainda se encontra na Terra, acerca do assunto, dou-lhe a conhecer, com permissão dele, a missiva que transcrevo, sem qualquer referência a nomes, para deixar-lhe a beleza livre das notas pessoais.

Eis o texto em sua feição pura e simples:

2 Meu caro, você não pode imaginar o que seja entregar à terra a carcaça hirta no dia dois de novembro.

3 Verdadeira tragédia para o morto inexperiente. Lembrar-se-á você de que o enterro de meu velho corpo, corroído pela doença, realizou-se ao crepúsculo, quando a necrópole enfeitada parecia uma casa em festa.

4 Achava-me tristemente instalado no coche fúnebre, montando guarda aos meus restos, refletindo na miserabilidade da vida humana…

5 Contemplando de longe minha mulher e meus filhos, que choravam discretamente num largo automóvel de aluguel, meditava naquele antigo apontamento de Salomão, — “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, ( † ) — quando, à entrada do cemitério, fui desalojado de improviso.

6 Da multidão irrequieta dos vivos na carne, vinha a massa enorme dos vivos de outra natureza. Eram desencarnados às centenas, que me apalpavam curiosos, entre o sarcasmo e a comiseração.

7 Alguns me dirigiam indagações indiscretas, enquanto outros me deploravam a sorte.

Com muita dificuldade, segui o ataúde que me transportava o esqueleto imóvel e, em vão, tentei conchegar-me à esposa em lágrimas.

8 Mal pude ouvir a prece que alguns amigos me consagravam, porque, de repente, a onda tumultuária me arrebatou ao círculo mais íntimo.

9 Debalde procurei regressar à quadra humilde em que me situaram a sombra do que eu fora no mundo… Os visitantes terrestres daquela mansão, pertencente aos supostos finados, traziam consigo imensa turba de almas sofredoras e revoltadas, perfeitamente jungidas a eles mesmos.

10 Muitos desses Espíritos, agrilhoados aos nossos companheiros humanos, gritavam ao pé das tumbas, contando os crimes ocultos que os haviam arremessado à vala escura da morte; outros traziam nas mãos documentos acusadores, clamando contra a insânia de parentes ou contra a venalidade de tribunais que lhes haviam alterado as disposições e desejos.

11 Pais bradavam contra os filhos. Filhos protestavam contra os pais.

12 Muitas almas, principalmente aquelas cujos despojos se localizam nos túmulos de alto preço, penetravam a intimidade do sepulcro e, de lá, desferiam gemidos e soluços aterradores, buscando inutilmente levantar os próprios ossos, no intuito de proclamar aos entes queridos verdades que o tímpano humano detesta ouvir.

13 Muita gente desencarnada falava acerca de títulos e depósitos financeiros perdidos nos bancos, de terras desaproveitadas, de casas esquecidas, de objetos de valor e obras de arte que lhes haviam escapado às mãos, agora vazias e sequiosas de posse material.

14 Mulheres desgrenhadas clamavam vingança contra homens cruéis, e homens carrancudos e inquietos vociferavam contra mulheres insensatas e delinquentes.

15 Talvez porque ainda trouxesse comigo o cheiro do corpo físico, muitos me tinham por vivo ainda na Terra, capaz de auxiliá-los na solução dos problemas que lhes escaldavam a mente, e despejavam sobre mim alegações e queixas, libelos e testemunhos.

16 Observei que os médicos, os padres e os juízes são as pessoas mais discutidas e criticadas aqui, em razão dos votos e promessas, socorros e testamentos, nos quais nem sempre corresponderam à expectativa dos trespassados.

17 Em muitas ocasiões, ouvi de amigos espíritas a afirmação de que há sempre muitos mortos obsidiando os vivos, mas, registando biografias e narrações, escutando choro e pragas, tanto quanto vendo o retrato real de muitos, creio hoje que há mais vivos flagelando os mortos, algemando-os aos desvarios e paixões da carne, pelo menosprezo com que lhes tratam a memória e pela hipocrisia com que lhes visitam as sepulturas.

18 Tamanhos foram meus obstáculos, que não mais consegui rever os familiares naquelas horas solenes para a minha incerteza de recém-vindo, e, somente quando os homens e as mulheres, quase todos protocolares e indiferentes, se retiraram, é que as almas terrivelmente atormentadas e infelizes esvaziaram o recinto, deixando na retaguarda tão somente nós outros, os libertos em dificuldade pacífica, e fazendo-me perceber que o tumulto no lar dos mortos era uma simples consequência da perturbação reinante no lar dos vivos.

19 Apaziguado o ambiente, o cemitério pareceu-me um ninho claro e acolhedor, em que me não faltaram braços amigos, respondendo-me às súplicas, e a cidade, em torno, figurou-se-me, então, vasta necrópole, povoada de mausoléus e de cruzes, nos quais os Espíritos encarnados e desencarnados vivem o angustioso drama da morte moral, em pavorosos compromissos da sombra.

20 Como vê, enquanto a Humanidade não se habilitar para o respeito à vida eterna, é muito desagradável embarcar da Terra para o Além, no dia dedicado por ela ao culto dos mortos que lhe são simpáticos e antipáticos.

21 Peça a Jesus, desse modo, para que você não venha para cá, num dia dois de novembro. Qualquer outra data pode ser útil e valiosa, desde que se desagarre daí, naturalmente, sem qualquer insulto à Lei. Rogue também ao Senhor que, se possível, possa você viajar ao nosso encontro, num dia nublado e chuvoso, porque, em se tratando de sua paz, quanto mais reduzido o séquito no enterro será melhor.

22 E porque o documento não relaciona outros informes, por minha vez termino também aqui, sem qualquer comentário.


Irmão X

(Humberto de Campos)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir