O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XII — Maio de 1869.

(Idioma francês)

O Espiritismo e a Ciência.

Pelo Sr. C. Flammarion. n

Depois que o Sr. Vice-Presidente da Sociedade, junto à tumba do mestre, proferiu a prece pelos mortos e, em nome da Sociedade, testemunhou os sentimentos de pesar que acompanham o Sr. Allan Kardec à sua partida desta vida, o Sr. Camille Flammarion pronunciou o discurso que vamos reproduzir em parte. De pé, numa elevação de onde dominava a assembleia, o Sr. Flammarion pôde ser ouvido por todos, afirmando publicamente a realidade dos fatos espíritas, seu interesse geral na Ciência e sua importância futura. Esse discurso não é apenas um esboço do caráter do Sr. Allan Kardec e do papel de seus trabalhos no movimento contemporâneo, mas, ainda e sobretudo, uma exposição da situação atual das ciências físicas, do ponto de vista do mundo invisível, das forças naturais desconhecidas, da existência da alma e de sua indestrutibilidade.

Falta-nos espaço para dar in extenso o discurso do Sr. Flammarion. Eis o que se liga diretamente ao Sr. Allan Kardec e ao Espiritismo, considerado em si mesmo. (O discurso inteiro será publicado em brochura). [A. DESLIENS]).


“Senhores,

“Aceitando com deferência o convite simpático dos amigos do pensador laborioso cujo corpo terreno jaz agora aos nossos pés, vem-me à mente um dia sombrio dó mês de dezembro de 1865, em que pronunciei palavras de supremo adeus junto à tumba do fundador da Livraria Acadêmica, do honrado Didier, que, como editor, foi colaborador convicto de Allan Kardec, na publicação das obras fundamentais de uma doutrina que lhe era cara. Também ele morreu subitamente, como se o céu houvesse querido poupar a esses dois Espíritos íntegros o embaraço fisiológico de sair desta vida por via diferente da comumente seguida. A mesma reflexão se aplica à morte do nosso ex-colega Jobard, de Bruxelas.

“Hoje, maior ainda é a minha tarefa, porquanto eu desejara figurar à mente dos que me ouvem e à dos milhões de criaturas que na Europa inteira e no Novo Mundo se têm ocupado com o problema ainda misterioso dos fenômenos chamados espíritas; – eu quisera, digo, poder figurar-lhes o interesse científico e o porvir filosófico do estudo desses fenômenos, ao qual se hão consagrado, como ninguém ignora, homens eminentes dentre os nossos contemporâneos. Estimaria fazer-lhes entrever os horizontes desconhecidos que a mente humana verá rasgar-se diante de si, à medida que ela ampliar o conhecimento positivo das forças naturais que em torno de nós atuam; mostrar-lhes que essas comprovações constituem o mais eficaz antídoto para a lepra do ateísmo, de que parece atacada, principalmente, a nossa época de transição; dar, enfim, aqui, testemunho público do eminente serviço que o autor de O Livro dos Espíritos prestou à filosofia, chamando a atenção e provocando discussões sobre fatos que até então pertenciam ao domínio mórbido e funesto das superstições religiosas.

“Seria, com efeito, um ato importante firmar aqui, junto deste túmulo eloquente, que o metódico exame dos fenômenos erroneamente qualificados de sobrenaturais, longe de renovar o espírito de superstição e de enfraquecer a energia da razão, ao contrário, afasta os erros e as ilusões da ignorância e serve melhor ao progresso, do que as negações ilegítimas dos que não querem dar-se ao trabalho de ver.

“Mas, este não é lugar apropriado a estabelecer uma arena às discussões desrespeitosas. Deixemos apenas que das nossas mentes desçam, sobre a face impassível do homem ora estendido diante de nós, testemunhos de afeição e sentimentos de pesar, que lhe permaneçam ao derredor em seu túmulo, qual embalsamamento do coração! E, pois que sabemos que sua alma eterna sobrevive a estes despojos mortais, do mesmo modo que a eles preexistiu; pois que sabemos que laços indestrutíveis unem o nosso mundo visível ao mundo invisível; pois que esta alma existe hoje tão bem como há três dias e que não é impossível se ache atualmente na minha presença. Digamos-lhe que não quisemos se desvanecesse a sua imagem terrena encerrada no sepulcro, sem unanimemente rendermos homenagem a seus trabalhos e à sua memória, sem pagar um tributo de reconhecimento à sua encarnação terrena, tão útil e tão dignamente preenchida.

“Traçarei, primeiro, num esboço rápido, as linhas principais da sua carreira literária.

“Morto na idade de 65 anos, Allan Kardec consagrara a primeira parte de sua vida a escrever obras clássicas, elementares, destinadas, sobretudo, ao uso dos educadores da mocidade. Quando, pelo ano de 1850, as manifestações, novas na aparência, das mesas girantes, das pancadas sem causa ostensiva, dos movimentos insólitos de objetos e móveis começaram a prender a atenção pública, determinando mesmo, nos de imaginação aventureira, uma espécie de febre, devida à novidade de tais experiências, Allan Kardec, estudando ao mesmo tempo o magnetismo e seus singulares efeitos, acompanhou com a maior paciência e clarividência judiciosa as experimentações e as tentativas numerosas que então se faziam em Paris.

“Recolheu e pôs em ordem os resultados conseguidos dessa longa observação e com eles compôs o corpo de doutrina que publicou em 1857, na primeira edição de O Livro dos Espíritos. Todos sabeis que êxito alcançou essa obra, na França e no estrangeiro. Havendo atingido a 16ª edição, tem espalhado em todas as classes esse corpo de doutrina elementar que, na sua essência, não é absolutamente novo, porquanto a escola de Pitágoras, na Grécia, e a dos druidas, em nossa própria Gália, ensinavam os seus princípios fundamentais, mas que agora reveste uma forma de verdadeira atualidade, por corresponder aos fenômenos.

“Depois dessa primeira obra apareceram, sucessivamente, O Livro dos Médiuns, ou Espiritismo experimentalO que é o Espiritismo, ou resumo sob a forma de perguntas e respostas; – O Evangelho segundo o Espiritismo; – O Céu e o Inferno; – A Gênese. A morte o surpreendeu no momento em que, com a sua infatigável atividade, trabalhava noutra sobre as relações entre o Magnetismo e o Espiritismo.

“Pela Revista Espírita e pela Sociedade de Paris, cujo presidente ele era, se constituíra, de certo modo, o centro a que tudo ia ter, o traço de união de todos os experimentadores. Faz alguns meses, sentindo próximo o seu fim, preparou as condições de vitalidade de tais estudos para depois de sua morte e instituiu a Comissão Central que lhe sucede.

“Suscitou rivalidades; fez escola de feição um pouco pessoal, havendo ainda alguns dissídios entre os “espiritualistas” e os “espíritas”. Doravante, senhores (tal, pelo menos, o voto que formulam os amigos da verdade), devemos unir-nos todos por uma solidariedade fraterna, pelos mesmos esforços em prol da elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal do verdadeiro e do bem.

“Quantos corações foram consolados, de início, por esta crença religiosa! Quantas lágrimas foram enxutas! Quantas consciências abertas aos raios da beleza espiritual! Nem todos são felizes aqui na Terra. Muitas afeições foram destruídas! Muitas almas foram adormecidas no cepticismo. Não será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres que vacilavam na dúvida e que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?

“Allan Kardec era o que eu denominarei simplesmente “o bom-senso encarnado.” Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações íntimas do senso comum. Não era essa uma qualidade somenos, na ordem de coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário, pode-se afirmá-lo, a primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não teria podido tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas. A maioria dos que se têm dado a estes estudos lembram-se de que na mocidade, ou em certas circunstâncias, foram testemunhas de manifestações inexplicadas. Poucas são as famílias que não contem na sua história provas desta natureza. O ponto de partida era aplicar-lhes a razão firme do simples bom-senso e examiná-las segundo os princípios do método positivo.

“Conforme o próprio organizador deste estudo demorado e difícil previra, esta doutrina; até então filosófica, tem que entrar agora num período científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais a princípio não se insistia, hão de tornar-se objeto da crítica experimental, sem a qual nenhuma constatação séria é possível. Esse método experimental, a que devemos a glória dos progressos modernos e as maravilhas da eletricidade e do vapor, deve colher os fenômenos de ordem ainda misteriosa a que assistimos para os dissecar, medir e definir.

“Porque, meus Senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o á-bê-cê. Passou o tempo dos dogmas. A Natureza abrange o Universo, e o próprio Deus, feito outrora à imagem do homem, a moderna Metafísica não o pode considerar senão como um espírito na Natureza. O sobrenatural não existe. As manifestações obtidas com o auxílio dos médiuns, como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural e devem ser severamente submetidas à verificação da experiência. Não há mais milagres. Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a que consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo desta nova psicologia?

“Doravante, o mundo é regido pela ciência e, Senhores, não virá fora de propósito, neste discurso fúnebre, assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos patenteia, precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas”

Aqui o Sr. Flammarion entra na parte científica de seu discurso. Expõe o estado atual da Astronomia e da Física, desenvolvendo particularmente as descobertas relativas à análise recente do espectro solar. Resulta dessas descobertas que não vemos quase nada do que se passa à nossa volta na Natureza. Os raios caloríficos, que evaporam a água, formam as nuvens, causam os ventos, as correntes, organizam a vida do globo, são invisíveis para a nossa retina. Os raios químicos que regem os movimentos das plantas e as transformações químicas do mundo inorgânico são igualmente invisíveis. A ciência contemporânea autoriza, pois, os pontos de vista revelados pelo Espiritismo e, por sua vez, nos abre um mundo invisível real, cujo conhecimento só pode esclarecer-nos quanto ao modo de produção dos fenômenos espíritas.

Em seguida o jovem astrônomo apresentou o quadro das metamorfoses, do qual resulta que a existência e a imortalidade da alma se revelam pelas mesmas leis da vida. Não podemos aqui entrar nessa exposição, mas aconselhamos vivamente os nossos irmãos em doutrina a ler e estudar na íntegra o discurso do Sr. Flammarion. n

Após sua exposição científica, assim termina o autor:

“Que os que têm a vista restringida pelo orgulho ou pelo preconceito não compreendam absolutamente os anseios de nossas mentes ávidas de conhecer e lancem sobre este gênero de estudos seus sarcasmos ou anátemas! Colocamos mais alto as nossas contemplações!… Foste o primeiro, oh! mestre e amigo! foste o primeiro a dar, desde o princípio da minha carreira astronômica, testemunho de viva simpatia às minhas deduções relativas à existência das humanidades celestes, pois, tomando do livro sobre a Pluralidade dos mundos habitados, o puseste imediatamente na base do edifício doutrinário com que sonhavas. Muito amiúde conversávamos sobre essa vida celeste tão misteriosa; agora, oh! alma, sabes, por visão direta, em que consiste a vida espiritual a que voltaremos e que esquecemos durante a existência na Terra.

“Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-se o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais se abrirem, não mais ouvida será a tua palavra… Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao Espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais acanhado.

“É-nos mais grato saber esta verdade, do que acreditar que jazes todo inteiro nesse cadáver e que tua alma se haja aniquilado com a cessação do funcionamento de um órgão. A imortalidade é a luz da vida, como este refulgente Sol é a luz da Natureza.

“Até à vista, meu caro Allan Kardec, até à vista!”



[1] N. do T.: Este discurso também se acha transcrito em Obras Póstumas, logo após a Biografia de Allan Kardec.


[2] O discurso pronunciado pelo Sr. Flammarion junto ao túmulo do Sr. Allan Kardec acaba de ser impresso. Forma uma brochura de 24 páginas, no formato de O Livro dos Espíritos. Preço: na Livraria Espírita, 50 centavos franco; para o receber, basta enviar esta soma em selos postais; por dúzia, 4 fr. 75 franco.


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