O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano IX — Setembro de 1866.

(Idioma francês)

Os irmãos Davenport em Bruxelas.

(Sumário)

1. — Os irmãos Davenport acabam de passar algum tempo na Bélgica, onde deram pacificamente suas representações. Temos numerosos correspondentes nesse país, mas não nos consta, nem por informação destes, nem pelos jornais, que tais senhores ali tenham sido alvo das cenas lamentáveis que ocorreram em Paris.  †  Será que os belgas dariam lições de urbanidade aos parisienses? Poder-se-ia crê-lo, comparando as duas situações. O que é evidente é que em Paris havia uma opinião formada, uma cabala organizada contra eles; e a prova disso é que os atacaram antes de saber o que iam fazer, antes mesmo que tivessem começado. Vaiar os que fracassam, os que não cumprem o que anunciam, é um direito comprado em toda parte, quando se paga a entrada. Mas, escarnecê-los, insultá-los, maltratá-los, quebrar seus instrumentos, antes mesmo que entrem em cena, é o que não se permitiria o último saltimbanco da feira. Seja qual for a maneira por que se considere esses senhores, tais procedimentos não têm desculpa num povo civilizado.

De que os acusavam? De se fazerem passar por médiuns? De pretenderem operar com a ajuda dos Espíritos? Se, da parte deles, era um meio fraudulento para excitar a curiosidade do público, quem tinha o direito de se queixar? — Os espíritas, que podiam achar ruim a exibição de uma coisa lamentável. Ora, quem se queixou? Quem denunciou o escândalo, a impostura e a profanação? Precisamente os que não creem nos Espíritos. Todavia, entre os que mais alto gritam que eles não existem, que fora do homem nada há, alguns acabam, graças às manifestações, se não por crer, ao menos por temer que haja alguma coisa. O medo de que os irmãos Davenport viessem prová-lo muito claramente desencadeou contra eles verdadeira cólera; se tivessem certeza de que eles não passavam de hábeis prestidigitadores, não haveria razão para temerem o primeiro escamoteador que surgisse. Sim, estamos convictos de que o medo de os ver triunfar foi a causa principal dessa hostilidade, que precedeu o seu aparecimento em público e preparou os meios de fazer abortar o seu primeiro espetáculo.

Mas os irmãos Davenport não passavam de um pretexto; não era à sua pessoa que visavam, mas ao Espiritismo, ao qual pensavam que eles pudessem dar uma sanção, e que, para grande pesar de seus antagonistas, frustra os efeitos da malevolência, pela prudente reserva de que jamais se afastou, apesar de tudo quanto fizeram para dela fazê-lo sair. Para muitas pessoas, é um verdadeiro pesadelo. Era preciso conhecê-lo muito pouco para crer que aqueles senhores, colocando-se em condições que ele desaprova, lhe pudessem servir de auxiliares. Contudo, serviram à sua causa, mas dele fazendo falar na ocasião e, sem o querer, a crítica lhe deu a mão, provocando o exame da doutrina. É de notar que todo o arruído feito em torno do Espiritismo é obra desses mesmos que o queriam abafar. O que quer que tenham feito contra ele, este jamais gritou; os adversários é que gritaram, como se já se julgassem mortos.

Extraímos do Office de publicité, jornal de Bruxelas, que dizem ter uma tiragem de 25.000 exemplares, as passagens seguintes de dois artigos publicados nos números de 8 e 22 de julho último, sobre os irmãos Davenport, bem como duas cartas de refutação, lealmente inseridas no mesmo jornal. Apesar de um tanto gasto, o assunto não deixa de ter seu lado instrutivo.


2. CRÔNICA BRUXELENSE.


“É bem certo que tudo acontece e que não se deve dizer: “Desta água não beberei.” Se me tivessem dito que algum dia eu veria o armário dos irmãos Davenport ou esses ilustres feiticeiros, eu teria sido capaz de jurar que isto jamais aconteceria, pois basta que me digam que alguém é feiticeiro para me tirar toda curiosidade a seu respeito. O sobrenatural e a feitiçaria não têm inimigo mais obstinado do que eu. Eu não iria ver um milagre quando o mostrassem de graça: essas coisas me inspiram a mesma aversão que os bezerros de duas cabeças, as mulheres de barba e todos os monstros; acho idiotas os Espíritos batedores e as mesas inteligentes, e não há superstição que me faça fugir para o fim do mundo. Julgai se, com tais disposições, eu teria ido engrossar a multidão no caso dos irmãos Davenport, quando os diziam em comércio regular com os Espíritos! Também confesso que não me teria vindo a ideia de desmascarar a trapaça, de quebrar o seu armário e provar que realmente eles não eram feiticeiros, pois me parece que, assim, eu teria dado a prova de que eu mesmo tinha acreditado em suas pompas e em seus prodígios. Ter-me-ia parecido infinitamente mais simples afastar, logo de início, essa suposta feitiçaria e supor que, tendo enganado a tanta gente, deveriam ser criaturas muito hábeis em seus exercícios. Quanto a compreender, eu não me teria dado a esse trabalho. Para quê, desde que os Espíritos aí não tomam parte? E se tivesse havido muitos pobres Espíritos no outro mundo para neste virem fazer o papel de comparsas, para quê, ainda?

“Li com muita atenção, embora tivesse em que empregar melhor o meu tempo, a maior parte dos livros usados pelos espíritas e aí encontrei tudo quanto era necessário para satisfazer a necessidade de uma religião nova, mas não com que me converter a essa velha novidade. Consultados todos os Espíritos, cujas respostas são citadas, nada disseram que não tivesse sido dito antes deles e em melhores termos do que as repetiram. Ensinaram-nos que é preciso amar o bem e detestar o mal, que a verdade é o contrário da mentira, que a alma é imortal, que o homem deve tender incessantemente a tornar-se melhor e que a vida é uma provação, coisas todas já sabidas há milhares de anos, e para a revelação das quais era inútil evocar tantos mortos ilustres e até personagens que, por mais célebres que sejam, jamais existiram. Não falo mesmo do Judeu-Errante;  †  mas, imaginai que eu vá evocar Dom Quixote  †  e que ele volte; isto não seria divertido ao máximo?

“Eu não tinha mais que uma objeção a respeito dos irmãos Davenport, já que não passavam de hábeis prestidigitadores. Esta objeção se resume nisto: afastado com muito gosto todo o Espiritismo, e de comum acordo, seus exercícios bem podiam não passar de um divertimento medíocre. É provável que não me tivesse vindo a ideia de ir vê-los se, feita a oferta graciosa de ir até lá, eu não tivesse considerado que a crônica obriga, que nem tudo são rosas na vida e que o cronista deve ir aonde vai o público e aborrecer-se um pouco, com direito à desforra. Resolvido a fazer as coisas em consciência, inicialmente fui de dia à sala do Círculo Artístico e Literário, onde se ocupavam na montagem do famoso armário. Vi-o ainda incompleto, à luz do dia, e despojado de toda a sua “poesia”. Se as ruínas precisam da solidão e das sombras da noite, os truques dos prestidigitadores necessitam da luz do gás, da multidão crédula e da distância. Mas os irmãos Davenport são bons jogadores e jogam as cartas à mesa. Podia-se ver, e entrava quem quisesse. Um empregado ianque montava o armário com tranquilidade; os violões, os pandeiros, as cordas, as campainhas lá estavam, de mistura com cofres, roupas, pedaços de tapetes, telas de embalagem; tudo ao abandono, à mercê de qualquer um e como desafio à curiosidade. Isto parecia dizer: Virai, revirai, examinai, procurai, investigai, fazei alguma coisa! nada sabereis.

“Nada há mais de insolentemente simples que o armário. É um armário para roupa branca, para vestuários, e que absolutamente não tem o aspecto de ser feito para alojar Espíritos. Pareceu-me de nogueira; na frente tem três portas, em vez de duas e se me afigura danificado pelas viagens que fez ou pelos ataques que sofreu. Dei uma olhadela, não muito de perto, porquanto, por mais aberto que estivesse, imaginei que um móvel tão misterioso devia cheirar a mofo, como a espineta mágica na qual escondiam Mozart em criança.

“Declaro formalmente que, a menos de aí pôr minhas roupas, eu não saberia o que fazer do armário dos irmãos Davenport. Cada qual no seu ofício. Eu o revi à noite, isolado sobre o estrado, diante da rampa: já tinha um aspecto monumental. A sala estava cheia, como jamais esteve nos dias em que Mozart, Beethoven e seus intérpretes bancavam as despesas da noite. O mais belo público que se pode ter: os mais amáveis, os mais espirituosos, as mais belas mulheres de Bruxelas, depois os conselheiros da Corte de Cassação, presidentes políticos, judiciários e literários; todas as academias, senadores, ministros, representantes, jornalistas, artistas, empreiteiros de construção, marceneiros, “que eram como um buquê de flores!” O honrado Sr. Rogier, ministro dos negócios estrangeiros, estava naquele sarau, onde lhe fazia companhia um antigo presidente da Câmara, o Sr. Vervoort que, desiludido das grandezas humanas, só conservou a presidência do Círculo, aliás uma realeza encantadora. À vista disto, senti-me completamente seguro. Um de nossos melhores pintores, o Sr. Robie, fez eco ao meu pensamento, dizendo-me: “Vedes! A Áustria e a Prússia podem bater-se quanto queiram. Contanto que a crise europeia não perturbe o nosso ministro dos negócios estrangeiros, a Bélgica pode dormir em paz.” Isto me pareceu peremptório, vós mesmo o julgareis e, sabendo que o Sr. Rogier assistiu sorridente ao sarau dos irmãos Davenport, podeis dormir tranquilamente. É o que tendes melhor a fazer.

“Vi todos os exercícios dos irmãos Davenport e de modo algum procurei compreender o seu mistério. Tudo quanto posso dizer, sem pensar o mínimo em lhes diminuir o sucesso, é que não me é possível sentir o menor prazer nestas coisas. Elas não me interessam. Em minha presença amarraram os irmãos Davenport; dizem que os amarraram muito bem; depois puseram farinha em suas mãos e os trancaram no armário, baixaram a luz do gás e ouvi um grande ruído de violões, de campainhas e de pandeiros no armário. De repente o armário abriu-se: um pandeiro rolou até os meus pés, brusca e violentamente, e os irmãos Davenport apareceram, desamarrados, saudando o público e sacudindo a farinha que haviam posto em suas mãos. Aplaudiram muito. Aí está!

— Enfim, como explicais isto?

— Há pessoas no Círculo que o explicam muito bem. Quanto a mim, por mais que deite os bofes pela boca, absolutamente não sinto vontade de o explicar. Eles se desamarraram, eis tudo; e a mágica da farinha foi feita com habilidade. Acho os preparativos demorados, o ruído enfadonho e tudo pouco divertido. E nada de espírito, nem no singular, nem no plural.

— Assim, não acreditais?

— Não; creio no aborrecimento que senti.

— E o Espiritismo? não acreditais nele?

— Isto é pergunta de Sganarello a Don Juan.  †  Logo ireis perguntar se creio no espírito mau. Responderei como Don Juan, que acredito que dois e dois são quatro e que quatro e quatro são oito. Ainda não sei se, vendo o que se passa na Alemanha e alhures, não seria forçado a fazer reservas.

— Então sois ateu?

— Não. Sem modéstia, sou o homem mais religioso da Terra.

— Assim, acreditais em Deus, na imortalidade da alma, na…

— Creio. É a minha felicidade e a minha esperança.

— E tudo isto se concilia convosco: quatro e quatro são oito!

— Precisamente. Tudo está aí. O turco é uma bela língua.

— Então ides à missa?

— Não. Mas não vos impeço de ir lá.

    O pássaro no galho, o verme brilhando na erva, os globos no espaço e meu coração cheio de adoração me cantam a missa noite e dia. Amo a Deus apaixonadamente e sem temor. Que quereis que, com isso, eu faça das religiões e de outras variedades do davenportismon

— E o Espiritismo? e Allan Kardec?

— Creio que o Sr. Allan Kardec, que faria muito melhor se usasse o seu nome verdadeiro, é tão bom cidadão quanto vós e eu. Sua moral não difere da moral comum, que me basta. Quanto às suas revelações, gosto tanto quanto do armário dos Davenport, com ou sem violões. Li as revelações dos Espíritos; seu estilo não vale o de Bossuet e, salvo citações feitas das obras dos homens ilustres, é pesado e por vezes banal. Eu não gostaria de escrever como o mais forte do grupo: meu diretor me diria que o macarrão é bom, mas que dele não se deve abusar. O Espiritismo tem sobrenatural e dogmas e eu desconfio desse bloco enfarinhado. Já havia dito isto há cinco anos, falando da doutrina, pois se trata de uma doutrina: aí há de tudo para improvisar uma religião nova. Seria melhor ser simplesmente religioso e ater-se às revelações do Universo.

“Vejo esta religião despontando. Já é uma seita, e considerável; não podeis imaginar o número e a seriedade das cartas que já recebi, por ter abordado o Espiritismo ultimamente. Ele tem os seus fanáticos, terá os seus intolerantes, seus sacerdotes, porque o dogma se presta à ação intermediária, uma vez que os Espíritos têm classes e preferências. Assim que esse novo dogma conquistar dez por cento dos crentes; veremos o seu clero. Eu o creio destinado a herdar do catolicismo, tendo em vista os seus aspectos sedutores. Esperai apenas que os espertos aí se misturem, e os profetas e os evocadores privilegiados surgirão através do mistério da coisa, que é suave e poética, como as ervas daninhas num campo de trigo.

Eis duas cartas que me foram dirigidas. Vêm de pessoas leais, ingênuas e convictas; é por isto que as publico.


“Ao Sr. Bertram.

“Há quatro anos eu era o que se pode chamar um franco-retardatário. Católico sincero, acreditava nos milagres, no diabo, na infalibilidade papal. Assim, eu teria aceito sem discutir a Encíclica de Pio IX, n com todas as suas consequências na ordem política.

“Mas, perguntareis, para que serve esta confissão de um desconhecido? Palavra de honra, Sr. Bertram, vou informar-vos, mesmo sob o risco de excitar a vossa verve trocista ou de vos fazer fugir até o fim do mundo.

“Um dia vi, em Antuérpia,  †  uma mesinha, vulgarmente chamada mesa falante, que me respondeu a uma pergunta mental em meu idioma natal, desconhecido dos assistentes; entre estes havia espíritos fortes, maçons que não acreditavam em Deus, nem na alma. A coisa lhes deu a refletir, leram com avidez as obras espíritas de Allan Kardec; fiz como eles, sobretudo quando vários sacerdotes me asseguraram que tais fenômenos eram obra exclusiva do… demônio. Não lamentei o tempo que isto me custou; muito ao contrário. Nesses livros não só achei a solução racional e muito natural do fenômeno acima, mas uma saída para muitas questões, para muitos problemas que eu me questionava de longa data. Aí encontrastes matéria para uma religião nova; mas, Sr. Bertrand, acreditais que haveria grande mal nisto, se fosse o caso? O catolicismo corresponde de tal modo às necessidades de nossa sociedade que não possa ser revigorado, nem substituído vantajosamente? Ou acreditais que a Humanidade possa dispensar toda crença religiosa? O liberalismo proclama belos princípios, mas é, em grande parte, céptico e materialista. Nessas condições jamais ligaria as massas a si, tampouco o catolicismo ultramontano. Se o Espiritismo um dia for chamado a tornar-se uma religião, será a religião natural, bem desenvolvida e bem compreendida, e esta, certamente, não é nova. É, como dizeis, uma velha novidade; mas é, também, um terreno neutro, onde todas as opiniões, tanto políticas quanto religiosas, um dia poderão dar-se as mãos.

“Seja como for, desde que me tornei espírita, algumas más línguas me acusam de me haver tornado livre-pensador. É verdade que a partir de então, assim como os espíritos fortes, de que falava acima, não creio mais no sobrenatural, nem no diabo; mas, em compensação, acreditamos um pouco mais em Deus, na imortalidade da alma, na pluralidade das existências; filhos do século dezenove, percebemos uma estrada segura e por ela queremos impulsionar o carro do progresso, em vez de o retardar. Vedes, pois, que o Espiritismo tem ainda seu lado bom, já que pode operar tais mudanças. E agora, para voltar aos irmãos Davenport, seria erro fugir às experiências, ou concluir de modo preconceituoso contra elas, em virtude de serem novas. Quanto mais extraordinários os fatos, mais merecem ser observados conscienciosamente, e sem ideias preconcebidas, porquanto, quem poderia vangloriar-se de conhecer todos os segredos da Natureza? Nunca vi os irmãos Davenport, mas li o que a imprensa francesa escreveu sobre eles e fiquei admirado da má-fé posta no caso. Os amadores poderão ler com proveito o livro Forças naturais desconhecidas, de Hermès (Paris, Didier, 1865); n é uma refutação do ponto de vista da Ciência, das críticas dirigidas contra eles. Se é verdade que aqueles senhores não se apresentam como espíritas, nem conhecem a doutrina, não há por que o Espiritismo lhes tomar a defesa. Tudo o que se pode dizer é que fatos semelhantes aos por eles produzidos são possíveis em virtude de uma lei natural hoje conhecida e pela intervenção de Espíritos inferiores. Apenas até aqui estes fatos ainda não se tinham produzido em condições tão pouco favoráveis, em horas fixas e com tanta regularidade.

“Espero, senhor, que acolhais estas observações desinteressadas e lhes deis hospitalidade em vosso jornal. Possam elas contribuir para elucidar uma questão mais interessante para os vossos leitores do que poderíeis supor.

“Vosso assinante,

H. Vanderyst.”


“Ei-la publicada! não me acusarão de pôr “a luz sob o alqueire.”

“Antes de mais, não tenho alqueire; depois, sem qualquer gracejo, não vejo aqui muita luz. Jamais fiz objeção à moral do Espiritismo; ela é pura. Os espíritas são honestos e caridosos: seus donativos para as creches mo provaram. Se se apegam aos seus Espíritos superiores e inferiores, nisso não vejo inconveniente. É uma questão entre o seu instinto e a sua razão.

“Há um pós-escrito na carta. Ei-lo:

“Permiti chame a vossa atenção para a obra que acaba de ter a honra do Índex: n A pluralidade das existências da alma, de Pezzani, advogado, onde essa questão é tratada fora da revelação espírita.”

“Passemos à outra carta:


(Segue-se uma segunda carta no mesmo sentido que a precedente, e que termina assim):

“Estou convicto de que, no dia em que a imprensa se dispuser a desenvolver tudo quanto o Espiritismo encerra de belo, o mundo fará progressos imensos, moralmente. Tornar claro ao homem que cada um traz em si a verdadeira religião, a consciência, deixá-lo em presença de si mesmo para responder por seus atos diante do Ser Supremo, que coisa importante! Não seria matar o materialismo, que faz tanto mal no mundo? Não seria uma barreira contra o orgulho, a ambição, a inveja, coisas que tornam infelizes os homens? Ensinar ao homem que deve fazer o bem para merecer sua recompensa? Certamente há homens que estão convencidos de tudo isto, mas quantos em relação à generalidade? E tudo isto se pode ensinar ao homem. De minha parte, evoquei meu pai e, conforme as resposta que obtive, a dúvida não é mais possível.

“Se eu tivesse a felicidade de manejar a pena como vós, trataria o Espiritismo como chamado a nos inculcar uma moral suave e agradável. Meu primeiro artigo teria por título: O Espiritismo, ou a destruição de todo fanatismo. A queda dos jesuítas e de todos os que vivem da credulidade humana. Colhem-se todas essas ideias no excelente livro de Allan Kardec. Como eu gostaria que tivésseis minha maneira de encarar o Espiritismo! Como faríeis bem à moral! Mas, meu caro Bertram, como pudestes encontrar sobrenatural e feitiçaria no Espiritismo? Não acho mais extraordinário em nos comunicarmos com nossos parentes e amigos passados ao outro mundo, por meio do fluido que nos põe em contato com eles, do que nos comunicarmos com os irmãos deste globo a distâncias fabulosas por meio do fio elétrico!”

Tudo publicado sem observação e sem comentário, para provar apenas que o Espiritismo tem, na Bélgica, partidários ardentes em sua fé. Positivamente a seita faz progressos, e logo o catolicismo terá de contar com ela.

“A imprensa parisiense não agiu de má-fé com os irmãos Davenport; o que ela faz ver bem é que estes não mais exibem pretensões ao sobrenatural. Ao menos que eu saiba, já não dão exibições a cinquenta francos por cabeça. Entretanto, creio que as pessoas que quisessem pagar seu lugar por esse preço não seriam mal recebidas. Para concluir, afirmo que seus exercícios não me parecem feitos para exercer grande influência sobre o futuro das sociedades humanas.”


Bertram.


3. — Depois das duas cartas que se acaba de ler, não teremos muita coisa a dizer sobre o artigo. Sua moderação contrasta com a acrimônia da maioria dos que outrora foram escritos sobre o mesmo assunto. Ao menos o autor não contesta aos espíritas o direito de ter uma opinião, que ele respeita, embora não a compartilhe. Ao contrário de certos apóstolos do progresso, reconhece que a liberdade de consciência é para todos; já é alguma coisa. Concorda mesmo que os espíritas têm coisas boas e são de boa-fé. Enfim, constata os progressos da doutrina e confessa que ela tem um lado sedutor. Assim, faremos apenas ligeiras observações.

O Sr. Bertram nos considera tão bom cidadão quanto ele, e nós lhe agradecemos. Mas acrescenta que faríamos muito bem em usar o nosso nome verdadeiro. Por nosso lado permitimo-nos perguntar-lhe por que assina seus artigos como Bertram, em vez de Eugène Landois, o que nada tira de suas qualidades pessoais, pois sabemos que ele é o principal organizador da creche de Saint Josse-Tennoode,  †  da qual se ocupa com louvável solicitude.

Se o Sr. Bertram tivesse lido os livros espíritas com tanta atenção quanto o diz, saberia se os espíritas são tão simplórios para evocar o Judeu-Errante  †  e Dom Quixote;  †  saberia o que o Espiritismo aceita e o que condena; não afetaria apresentá-lo como uma religião, porque, da mesma maneira, todas as filosofias seriam religiões, desde que é de sua essência discutir as bases mesmas de todas as religiões: Deus e a natureza da alma. Compreenderia, finalmente, que se algum dia o Espiritismo se tornasse uma religião, não poderia tornar-se intolerante sem renegar seu princípio, que é a fraternidade universal, sem distinção de seita e de crença; sem abjurar sua divisa: Fora da caridade não há salvação ( † ) o símbolo mais explícito do amor ao próximo, da tolerância e da liberdade de consciência. Ele jamais disse: “Fora do Espiritismo não há salvação.” Se uma religião se apoiasse no Espiritismo com exclusão desses princípios, não seria mais Espiritismo.

O Espiritismo é uma doutrina filosófica que toca em todas as questões humanitárias. Pelas profundas modificações que traz às ideias, faz encarar as coisas de outro ponto de vista. Daí, para o futuro, inevitáveis modificações nas relações sociais; é uma mina fecunda onde as religiões, como as ciências, como as instituições civis, colherão elementos de progresso. Mas, porque toca em certas crenças religiosas, não constitui um culto novo, como não é um sistema particular de política, de legislação ou de economia [organização] social. Seus templos, suas cerimônias e seus sacerdotes estão na imaginação de seus detratores e dos que temem vê-lo tornar-se religião.

O Sr. Bertram critica o estilo dos Espíritos e coloca o seu muito acima; é direito seu e não lho disputaremos. Também não lhe contestamos que a moral dos Espíritos nada de novo nos ensina. Isto prova uma coisa: os homens são apenas mais culpados por praticá-la tão pouco. É, pois, de admirar que Deus, em sua solicitude, lhas repita sob todas as formas? Se, a tal respeito, o ensino dos Espíritos é inútil, o do Cristo o era igualmente, pois que ele não fez senão desenvolver os mandamentos do Sinai; os escritos de todos os moralistas também são inúteis, pois apenas repetem a mesma coisa em outros termos. Com tal sistema, quanta gente cujos trabalhos seriam inúteis, sem aí incluir os cronistas que, por sua condição, nada devem inventar.

Não resta dúvida de que a moral dos Espíritos é tão velha quanto o mundo, o que nada tem de surpreendente, porquanto, não sendo a moral senão a lei de Deus, esta lei deve ser de toda eternidade e a criatura nada pode acrescentar à obra do Criador. Mas não há nada de novo no modo de ensinar? Até agora o código de moral só tinha sido promulgado por algumas individualidades; foi reproduzido em livros que nem todo mundo lê ou compreende. Pois bem! hoje esse mesmo código é ensinado, não mais por alguns homens, mas por milhões de Espíritos, que foram homens, em todos os países, em cada família e, a bem dizer, a cada indivíduo. Credes que aquele que tiver sido indiferente à leitura de um livro, que tiver tratado as máximas que ele encerra como lugares-comuns, não ficará diversamente impressionado se seu pai, sua mãe ou um ser que lhe é caro e que respeita, lhe vem dizer, mesmo num estilo inferior ao de Bossuet: “Não estou perdido para ti, como pensavas; estou ao teu lado, vejo-te e te escuto; conheço-te melhor do que quando estava vivo, porque leio o teu pensamento. Para ser feliz no mundo onde estou, eis a regra de conduta a seguir; tal ação é boa e tal outra é má, etc.” Como vedes, é um ensino direto ou, se preferirdes, um novo meio de publicidade, tanto mais eficaz quanto vai direto ao coração; que nada custa; que se dirige a todos, ao pequeno como ao grande, ao pobre como ao rico, ao ignorante como ao sábio, e desafia o despotismo humano que lhe queria opor uma barreira.

Mas, direis, isto é possível? Não será uma ilusão? Essa dúvida seria natural se tais comunicações só fossem feitas a um único homem privilegiado, pois nada provaria que não se engane; mas, quando milhares de indivíduos as recebem semelhantes, diariamente e em todos os países do mundo, é racional pensar que todos sejam alucinados? Se o ensino do Espiritismo fosse relegado nas obras espíritas, não teria conquistado a centésima parte dos adeptos que possui. Esses livros apenas resumem e coordenam esse ensino; mas o que constitui o seu sucesso é que cada um encontra em seu íntimo a confirmação do que eles encerram.

Só haverá motivo para dizer-se que o ensino moral dos Espíritos é supérfluo quando se tiver provado que os homens são bastante bons para os dispensar. Até lá não é de admirar vê-los repetidos sob todas as formas e em todos os tons.

Direis, Sr. Bertram: — Que me importa que haja ou não Espíritos! É possível que isto vos seja indiferente, mas não é assim com todos. É absolutamente como se dissésseis: “Que me importa que haja habitantes na América, e que o cabo elétrico venha prová-lo!” Cientificamente é algo que prova o mundo invisível; moralmente, é muito. O fato de os Espíritos povoarem o espaço, que se julgava desabitado, é a descoberta de todo um mundo, a revelação do futuro e do destino do homem, uma revolução nas crenças. Ora, se a coisa existe, nenhuma negação poderá impedi-la de existir. Seus resultados inevitáveis bem merecem que com ela a gente se preocupe. Sois homem de progresso e repelis um elemento do progresso? um meio de melhorar a Humanidade, de consolidar a fraternidade entre os homens? uma descoberta que conduz à reforma dos abusos sociais, contra os quais clamais incessantemente? Credes em vossa alma imortal e não vos preocupais absolutamente em saber em que ela se tornará, em que se tornaram vossos parentes e amigos? Francamente, isto é pouco racional. Direis que não é no armário dos irmãos Davenport que o encontrareis; de acordo. Jamais dissemos que aquilo fosse Espiritismo. Todavia, esse mesmo armário, precisamente por que, certo ou errado, aí fizeram intervirem os Espíritos, fez falar muito dos Espíritos, mesmo aos que neles não acreditavam. Daí as pesquisas, os estudos, que não teriam sido feitos se esses senhores se tivessem apresentado como meros prestidigitadores. Se os Espíritos não estavam em seu armário, bem podiam provocar esse meio de fazer uma porção de gente sair de sua indiferença. Vedes que vós mesmo, sem que vos désseis conta, fostes levado a semear a ideia entre os vossos numerosos leitores, o que não teríeis feito sem esse famoso armário.

Quanto às verdades novas que ressaltam das revelações espíritas, fora da moral, recomendamos o artigo publicado na Revista de janeiro de 1865, sob o título de O que ensina o Espiritismo.



[1] N. do T.: Grifo nosso. Alusão aos irmãos Davenport.


[2] N. do T.: Alusão à encíclica Quanta cura  †  (1864), que condenava o liberalismo, o socialismo e o naturalismo. Pio IX (1792-1878) foi um dos papas que por mais tempo estiveram à testa da Igreja Católica. Seu pontificado durou trinta e dois anos, incluindo todo o período em que Allan Kardec codificou o Espiritismo.


[3] [Des Forces naturelles inconnues, à propos des phénomènes produits par les frères Davenport et par les médiums en général, étude critique par Hermès - Google Books.]


[4] [Index Librorum prohibitorun et expurgandorum. Elenco de livros proibidos pela Igreja  que se começou a fazer desde o IV Concílio Lateranence, 1515.]


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