O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VI — Janeiro de 1863.

(Idioma francês)

Boïeldieu na milésima representação da Dama Branca.

(Sumário)

1. — As estrofes seguintes, do Sr. Méry, foram recitadas na milésima representação da Dama Branca, no teatro da Ópera Cômica,  †  em 16 de dezembro de 1862:


A Boïeldieu.


Glória à peça onde canta inteira a melodia

Da obra de Boïeldieu com aplausos de alegria,

E, como no passado, ainda jovem, sem danos!

Sala cheia, a rever Paris, sempre louçã,

A Dama d’Avenel, a nobre castelã!

Dez vezes centenária, após trinta e seis anos!


É que lhe deu o autor tudo quanto um poeta

Pode dar de melhor ao que a lira interpreta,

Prodigaliza o mestre, em sucessivo ardor,

Encantos que jamais soube alguém traduzir:

O tom que faz sonhar, o tom que faz sorrir,

Do Espírito a alegria em êxtase de amor!


Sonoridade tal vem da graça suprema

Que se evola da voz, e da orquestra, e do poema,

Não conseguiu vencê-la a arte da noite então;

Porque de Boïeldieu é a mais bela vitória,

Torna o público artista e à plateia em glória

Expressa-lhe o universo a voz do coração!


Com que felicidade o mestre augusto lida

Em inspirados tons pela musa querida!

Qual rio de ouro cai do alaúde sereno!

Como raios que vêm de uma bruma escocesa!

Para tal obra, pois, a música francesa

Nada tem a temer dos Alpes ou do Reno!


Cabe-nos festejar milésimo tão nobre,

Que tão alto se eleva e de aplausos se cobre;

E… conhecemos nós os segredos do além?…

Quem sabe? aqui talvez sob este céu desfrute

Uma sombra, esta noite, e alegre nos escute,

Como um ouvinte a mais e não vemos ninguém!


2. — Todos os espíritas devem ter notado esta última estrofe, que não poderia corresponder melhor ao seu pensamento, nem melhor exprimir a presença, em nosso meio, do Espírito dos que deixaram seus despojos carnais. Para os materialistas, é um simples jogo de imaginação do poeta, porque, em sua opinião, do homem de gênio, cuja memória se celebrava, nada restava e as palavras que lhe eram dirigidas se perdiam no vazio, sem encontrar eco. As lembranças e os pesares que deixou, para eles nada valem; ainda mais: sua vasta inteligência é mero acaso da Natureza e de sua organização. Onde, então, o seu mérito? Não o teria por haver composto suas obras-primas do que os órgãos da Barbária  †  que os executam. Tal pensamento não tem algo de glacial, diríamos até, de profundamente imoral? E não é triste ver homens de talento e de ciência preconizá-los em seus escritos e, do alto de suas cátedras, os ensinar à juventude das escolas, buscando provar-lhes que só o nada nos espera e, consequentemente, que aquele que pôde ou soube subtrair-se à justiça humana, nada mais tem a recear? Esta ideia — nunca seria demais repetir — é eminentemente subversiva da ordem social e, cedo ou tarde, os povos sofrem as terríveis consequências de sua predominância pelo desencadeamento das paixões. Porque seria o mesmo que lhes dizer: Podeis fazer impunemente tudo o que quiserdes, contanto que sejais mais fortes. Entretanto, esta ideia — é preciso convir em louvor à Humanidade — encontra um sentimento de repulsa nas massas. Perguntamos que efeito teria produzido o poeta sobre o público se, em vez daquela imagem tão verdadeira, tão comovente e tão consoladora da presença do Espírito Boïeldieu em meio ao numeroso auditório, feliz com a aprovação à sua obra, tivesse dito: Do homem que lamentamos não resta senão o que foi para o túmulo e que se destrói dia a dia; mais alguns anos e nem mesmo o seu pó restará; mas do seu ser pensante nada resta; entrou no nada de onde saiu; não mais nos vê nem nos escuta. E vós, seu filho aqui presente, que venerais a sua memória, vossos pesares não mais o atingem; em vão o chamais em vossas preces fervorosas: não poderá vir, porque não existe mais; a tumba fechou-se para sempre sobre ele. É em vão que esperais revê-lo ao deixar a Terra, porque também entrareis no nada, como ele; em vão lhe pedireis apoio e conselhos: ele vos deixou só e bem só. Credes que ele continua a ocupar-se de vós, que está ao vosso lado, que está aqui, entre nós? Ilusão de um espírito fraco. Sois médium — dizeis — e acreditais que ele pode manifestar-se por vós! Superstição oriunda da Idade Média; efeito de vossa imaginação, que se reflete em vossos escritos.

Perguntamos: O que teria dito o auditório de semelhante quadro? É, entretanto, o ideal da incredulidade. Certamente alguns assistentes, ao ouvirem esses versos, terão pensado: “Linda ideia! Tem fundamento!” Mas outros, em maior número, terão pensado: “Pensamento suave e consolador que aquece o coração!” Contudo, terão acrescentado: “Se a alma de Boïeldieu está presente, como é ela? Sob que forma? É uma chama, uma centelha, um vapor, um sopro? Como vê e escuta?” É precisamente a incerteza quanto ao estado da alma que faz nascer a dúvida. Ora, o Espiritismo vem dissipar tal incerteza, dizendo: Ao morrer, Boïeldieu deixou apenas seu invólucro pesado e grosseiro; mas sua alma conservou o envoltório fluídico indestrutível; doravante, livre do entrave que o retinha ao solo, pode elevar-se e transpor o espaço. Está aqui sob sua forma humana, posto que eterizada e, se o véu que o oculta à nossa vista pudesse ser levantado, veríamos Boïeldieu, indo e vindo, ou pairando sobre a multidão; associados ao seu triunfo, estariam com ele milhares de Espíritos de corpos etéreos.

Ora, se o Espírito Boïeldieu lá está, é que se interessa pelo que lá se passa, é que se associa ao pensamento dos assistentes. Por que, então, não daria a conhecer seu próprio pensamento, se tem esse poder? É tal poder que o Espiritismo constata e explica. Seu envoltório fluídico, por mais invisível e etéreo que seja, não deixa de ser uma espécie de matéria; em vida, servia de intermediário entre a alma e o corpo; por ele transmitia sua vontade, à qual o corpo obedecia e pelo qual a alma recebia as sensações experimentadas pelo corpo; numa palavra, é o traço de união entre o Espírito e a matéria propriamente dita. Hoje, desembaraçado do seu invólucro corpóreo, associando-se por simpatia a outro Espírito encarnado, pode, de certo modo, servir-se do corpo deste para exprimir seu pensamento pela palavra ou pela escrita; dito de outro modo, por via mediúnica, isto é, por um intermediário.

Assim, da sobrevivência da alma à ideia de que ela pode estar em nosso meio não há senão um passo; dessa ideia à possibilidade de se comunicar a distância não é grande. Tudo está em nos darmos conta da maneira pela qual se opera o fenômeno. Vê-se, pois, que a Doutrina Espírita, dando como verdade as relações entre os mundos visível e invisível, não avança uma coisa tão excêntrica quanto alguns o dizem, e a solidariedade que ela prova existir entre esses dois mundos é a porta que abre os horizontes do futuro.


3. — Depois de lidas as estrofes do Sr. Méry na Sociedade Espírita de Paris, em sessão de 19 de dezembro de 1862, a Sra. Costel recebeu do Espírito Boïeldieu a seguinte comunicação:

“Sinto-me feliz em poder manifestar meu reconhecimento aos que, celebrando o velho músico, não esqueceram o homem. Um poeta — os poetas são divinos — sentiu o sopro da minha alma ainda tomada de harmonia. A música ressoava em seus versos de notável inspiração, nos quais vibrava também uma nota comovida, que fazia planar acima dos vivos a sombra feliz daquele que festejavam.

“Sim, eu assistia àquela festa comemorativa do meu talento humano e ouvia, acima dos instrumentos, uma voz, mais melodiosa que a melodia terrena, que cantava a morte despojada de seu antigo terror, aparecendo não mais como uma sombria divindade do Erebo,  †  mas como a estrela brilhante da esperança e da ressurreição.

“A voz também cantava a união dos Espíritos com seus irmãos encarnados. Doce mistério! Fecunda associação que completa o homem e lhe restitui as almas, que em vão chamava do silêncio do túmulo.

“Precursor dos tempos, o poeta é abençoado por Deus. Cotovia matinal, ele celebra a aurora das ideias muito antes que elas surjam no horizonte. Mas eis que a revelação sagrada se espalha como uma bênção sobre todos e, como o poeta amado, sentis todos em redor de vós a presença daqueles que vossa lembrança evoca.”

Boïeldieu. n



[1] [v. Boïeldieu.]


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